Na interminável escadaria daquele enorme prédio feio do centro de Porto Alegre, desço os degraus de três em três. E ela só consegue de um em um por causa do salto e tudo, mas com o triplo da velocidade. Juliete está grudada no meu calcanhar de Aquiles.
– Por que você é assim, hein? – me pergunta, depois que vencemos o saguão e botamos os pés na calçada imunda.
– Assim como? – rebato. Eu espero que essa seja uma questão retórica, do contrário vamos atravessar a madrugada discorrendo retroativamente os motivos, os fatos e os acidentes que me fizeram ser isso que me sobrou para ser.
– Não sei, assim. Você está sempre achando um jeito de escapar de mim. Eu te faço algum mal?
– Vários.
– Então por que você está sempre na minha volta?
– Porque você me chama, Juliete.
– Era só me dizer não.
– Eu não sei dizer não.
Ameaço ir dando o fora umas quantas vezes, e no desespero a garota me oferece uma carona, uma pizza qualquer hora dessas, outro encaixe bucal. E eu nego tudo. Olha só, estou aprendendo. Estou firme mesmo, nessa parada de fazer os troços certos, sem sacanagem. Vai ver é por isso que tudo anda errado na minha vida. Vou começar a fazer o contrário de tudo que já fiz até agora, pra ver no que dá. Até me proponho a dar satisfações à Juliete, mas ela não quer saber de nada, muito menos os motivos que a levaram a ser rejeitada nesse domingo amalucado. E acho que a garota nem entenderia o que eu ganho com isso, mesmo porque nem eu mesmo entendo ainda, direito. Sei lá, eu ganho dignidade, honra, distinção, prestígio. E um pau bem duro, que não pode ser vendido separadamente.
– Você não sabe viver o momento?
Que clichê horroroso. Não existe isso de momento. Um momento só é um momento digno de nota quando referenciado em todos os instantes significativos que sucederam antes de chegar a sua hora. E também há os momentos subsequentes. Ou seja, é ilusão achar que esse troço gostoso que poderia estar acontecendo entre nós lá em cima, agora às 23:37, seria apenas fruto isolado do agora e não um ato cheio de respostas e promessas. Eu não quero mais viver momentos, coisas sem significados. Não quero esquecer o passado e nem descartar o futuro. Ando sofrendo de agorafobia. Me deixa ir pra casa, por favor.
– Eu não pertenço a ele – Juliete diz, do nada.
– O quê?
– Você disse antes, que não queria fazer amor comigo, enquanto eu for de outro cara. Mas eu não pertenço a ele.
– É, mas também não é minha.
– Eu não me sinto confortável em “ser de alguém”
– Eu quero alguém que não se incomode nem um pouco de ser chamada de “minha”.
– E isso existe?
– Eu espero que sim. Aliás, eu já esperei que sim tanto tempo, não me importo de continuar esperando, mais um tempo.
– Não faz isso. Não deposita em mim essa esperança. Eu não quero ter essa responsabilidade. E não adianta você ficar me dizendo que posso fazer melhor, quando sei que já estou dando tudo que posso – me diz ela.
– E quem disse que eu me referia a você? Pode ser outra qualquer – eu digo, e eu mesmo me aplico uma correção, mentalmente. Não pode. Não pode ser outra, quanto mais uma outra qualquer. Tem que ser Juliete. Sei lá eu por que, mas tem. Só que não falo isso pra ela, claro que não, você não pode jogar um jogo e abrir de saída todas as cartas que tem em mãos. É arriscado dizer tudo. – Olha, Baby Julie, está bem claro que a gente se gosta, se bobear a gente até se ama. Só que não dá pra ser assim, entende?
– Não me obrigue a escolher, Santiago.
– Mas você tem! Você precisa fazer isso, criatura!
– Não grita comigo!
– Não estou gritando! – Me percebo por um momento e logo baixo o tom: – Não estou gritando.
– Você acha que é fácil, não acha?
Ela tem razão, não deve ser bolinho, eu mesmo detestaria estar em seu lugar, de cara com a situação. Eu não queria ser namorada daquele cretino, eu adoraria mesmo é estar comigo, que sou inteligente, cheiroso, engraçado, soturno, complicado, charmosamente infeliz, perigoso e desajeitado, além de uma pessoa sexo-oralmente devota e dedicada (garotas gostam de tudo isso, certo?). Eu compreendo suas dúvidas, sério mesmo. Talvez se eu fosse – fora tudo que já listei – ainda bonitão, rico, ombrudo e com mais uns treze centímetros de altitude, esse dilema sofiânico já teria sido resolvido há tempos. Aliás, não daria nem graça competir. Com mais dinheiro, estatura e feições europeias, Santiago Ventura seria temido, imbatível, o terror da vizinhança. Porém, a genética e a economia não foram tão caridosas comigo e a realidade é outra, e é com ela que eu tenho de me acostumar, é em cima dessa mesa que preciso dar um jeito de esticar minhas pernas. Não se pode ter e nem ser tudo. Eu não posso escolher essas coisas. Mas Juliete pode. Pode optar por alguém com menos dinheiro, um rosto assimétrico e um cabelo não tão macio e ornamental. Então sim, ela tem essa responsabilidade, minhas fichas estão todas na mão dessa garota.
As encruzilhadas estão aí. Existe uma impossibilidade física de percorrer duas estradas ao mesmo tempo. Você não pode mandar suas pernas caminharem por uma rua e sair rolando seu tronco e todo o resto dos seus tentáculos por uma segunda via alternativa. É preciso seguir um só caminho para se manter íntegro, no sentido legítimo do termo. Pra ficar inteiro, completo, pleno. É ruim passar os dias assim, se contentando com esses fragmentos de satisfação, esses pedaços de bem-estar e essas alegrias pulverizadas. Tudo ou nada. Agora ou nunca. Ganhar ou perder.
Voltando à pergunta. Não, não é fácil, Juliete. Primeiro você precisa saber o que quer, e depois assumir pra você mesmo que é isso que você quer, e essa não é a estória toda, não é nem metade do caminho e já dá uma vontade de desistir e fingir não querer porra nenhuma. Mesmo com tudo organizado em mente, você ainda precisa correr atrás do que afinal escolheu. Essa é a parte mais difícil. Conseguir as coisas. Querer coisas é muito bom, mas qualquer um quer.
– Tem certeza que não quer subir?
Não.
– Sim – respondo.
– Última chance – ela me empareda, ardilosa.
– Não mesmo, Juliete. Pode apostar, a próxima vez que a gente se encontrar, se é que isso ainda vai acontecer, será um sinal de que você resolveu tudo e decidiu ficar só comigo pra valer. Então, se você e eu nunca mais nos vermos, é porque... você sabe. E aí eu saberei também – tudo isso sai da minha boca, com uma firmeza monumental. E é isso aí mesmo, ou não me chamarei mais Santiago Ventura. Acho bom, só por precaução, começar a ver aí um outro nome. Eu sempre gostei de “Seymour”, o que vocês acham? Estou só brincando.
– Então até breve, Santiago – ela me dirige essa fala com olhos comprometedores.
– É, isso é o que vamos ver – assim retribuo, já me virando de costas, indo embora, louco pra subir e passar a noite. Cansado dessa lenga-lenga, pego um ônibus noturno até em casa. Será uma longa semana.
(Amanhã será mais um dia comum e movimentado nessa calçada. Milhares de passantes vão cruzar a frente deste prédio velho, fétido e decaído, típico da região central de Porto Alegre. Teremos um sol infernal, corre-corre, um festival bizarro de talentos, brados de alguma religião obscura, ambulantes oferecendo todo tipo de porcaria que ninguém precisa comprar. E ninguém terá dimensão da importância da conversa que aos trancos ocorreu ontem aqui, nem do quê essa travessa, essa portaria, essa calçada e esse prédio representaram pra mim, a partir de hoje. É estranho pensar que logo ao amanhecer esse lugar será apenas mais um lugar, sem significado algum, para todo mundo. Enquanto eu repassarei todo aquele promissor diálogo sempre que meu ônibus curvar essa esquina, por um bom tempo. Com um sorriso na boca ou um desgosto peitoral, ainda não sei.)