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» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(054 e 2/3)

– Puxa, hein? Isso aqui até que é bem ajeitado – falo, inspecionando todos os cômodos.
– O que você esperava?
– Sei lá. Não parece a casa de um viciado.
– Eu pago uma faxineira pra vir aqui três vezes por semana. E vivo trazendo comida, água, material de higiene, tudo que alguém precisa pra viver com alguma decência. Se está meio vazio, é porque ele repassa as coisas pra fumar aquela bosta nojenta.
– Às vezes me esqueço que você é uma garota legal, Juliete – largo essa, que sai como um elogio meio estranho.
– Não exagera também. Prometi à minha mãe que cuidaria dele – ela vai me contando, enquanto enfia nossa lasanha congelada no forno de microondas. – Fui eu quem batalhei pro pai alugar esse apê pro Mano, ao invés de deixá-lo por aí. Meu irmão não é indigente. É só mais um dependente químico, uma versão sortuda de um drogado comum.

É verdade. Eu, que nunca passei da bebida e do cigarro, não tenho dois quartos e nem metade dessa mobília que ainda não se transformou em pó. O cara não tem juízo, mas tem sorte de ter Juliete como irmã, no duro.

*
– Nossa, Santi, eu fico impressionada como você sabe tudo que eu gosto – diz Juliete num timbre dengoso e caramelizado, enquanto estamos esparramados de exaustão, numa cama de solteiro apertada no humilde quartinho dos fundos. Mas não é nada disso, não é o que parece, coisa alguma está rolando de fato, estou bancando o resistente, como um prisioneiro de Guantánamo. Ela apenas está de bruços e eu me segurando para não cair, de corpo enviesado e sustentando minha cabeça com o cotovelo no colchão. A mão direita acaricia por baixo da blusa as costas da garota, que exala cortisol a cada suspiro, se deleitando no meu tato como um cãozinho sem dono. Meus dedos passeiam da lombar às omoplatas, visitando cada vértebra de um ponto ao outro, amaciando micro-cabelinhos que eriçam entre suas respirações aliviadas, levantando um cheiro de desodorante Dove a cada infusão de oxigênio. É um cenário contraditoriamente tenebroso e pacífico, se isso for possível. Mas, sabe como é, só por hoje não vou tentar desabotoar este sutiã. Com um “shhh...” tento interrompê-la de verbalizar, mas Juliete está mesmo admirada com a rapidez que peguei suas manhas em tão pouco tempo de convivência, “enquanto uns e outros levam sete anos e não aprendem nada...”, segundo ela mesma.

– Cala a boca, Juliete. Não é hora de pensar. Só sinta o lance, entende?
– Tá, tá. Desculpa – ela silencia e aguarda o próximo movimento do meu toque.

Já que surgiu o assunto. Coisas que ela gosta, que descobri em dez dias juntos, submetidos ao mesmo cubículo. Bom, tem a passada de mão nas costas. Futricar entre seus dedinhos do pé a enlouquece. Esfregar o olfato em sua pele amanhecida enquanto ela redemoinha o corpo na cama, se espreguiçando pela manhã. Barbicha roçando entre os seios. Unhadas no couro cabeludo. Minha drenagem linfática caseira. Conversinha na orelha, com o termo “minha princesinha gostosa” em algum lugar da frase. Gozar dentro. (Na verdade, mais que isso, ela adorava quando eu permanecia lá o maior tempo possível depois do negócio já feito, uma vez chegando a chorar de um jeito indecifrável quando deslizei pra fora abruptamente, coisa que me apavorou pra burro. Garotas, garotas...) Que eu tomei nota, é mais ou menos por aí.

Como já estamos aqui, coisas que ela odeia (coisas que “uns e outros” ainda não se tocaram que não devem fazer após sete anos de relacionamento). Lambida no pescoço. Mordida no calcanhar. Beijo no umbigo. Dedo anal, manipulação clitoriana ostensiva e tapas no rosto (ações altamente condenáveis, com reações altamente decepcionantes, mas fazer o quê, a vida é assim). Embora tenha gargalhado naquele dia, beijo na boca com metade de uma cebola escondida atrás dos dentes não é recomendável. “Bohemiam Rhapsody” (Juliete não detesta Queen, a não ser durante o coito, diz ela que não consegue ter o orgasmo com aquela gritaria toda e aquele monte de “aleluia”. Eu sempre achei excitante.) E Juliete é a única garota do mundo de quem já tive notícias a não curtir muito abraços também. Sim, sim, abraços! É bem esquisito, pois “fica sem ar”, me disse uma vez. Sei lá, ela tem essas ressalvas com os contatos de primeiro grau entre terráqueos.

Tem várias outras coisas que ainda poderia descobrir e adicionar no manual de instruções que estou montando, antes de fechá-lo definitivamente e oferecer ao namorado dela em troca de um bom relógio suíço ou dinheiro vivo, se é que o camarada tem algum interesse nisso.

Eu sei, todas essas paradas que decorei sobre essa garota são de ordem lasciva. É que, tudo indica, nós funcionamos mais ou menos como aquelas antenas velhas de tevê. Se você quiser alguma sintonia, precisa posicionar o troço na horizontal. Quando as antenas ficam de pé, só o que dá são ruídos, interferências e a imagem não passa de um borrão indiscernível.

Para evitar um torcicolo dos brabos, repousei perto de seus olhos atentos e melancólicos de tão castanhos. Ela tenta me beijar, só que eu recuo de forma elegante. Ela avança mais um pouco, e por milímetros não vou de costas para o chão. Juliete me puxa pela nuca e faz nova tentativa, com a língua em riste.

– Ei, me beija... – ordena, buscando me trazer com as mãos autoritárias pelas têmporas. – Vem, Santiago...
– Não, não. Eu sabia que isso ia acabar assim. Que porcaria.
– E daí?
– E daí que não quero que isso aconteça.
– Quer sim!

Como “quer sim!”? Ela deve ter feito suposições a respeito da inflação na minha braguilha, mas isso é só uma questão biológica. A biologia é a favor da procriação, não importa como, se foi com amor ou um estupro, como é o caso aqui. Mas amanhã quem vai aguentar e racionalizar as consequências desse ato sou eu, a natureza não está nem aí.

– Não, pode parando. Não enquanto você pertencer a outro cara. Parei com isso.
– Ah, deixa de besteira!
– Falo sério.
– Mas isso nunca nos impediu antes – diz com beiços pedintes.
– É, mas agora é diferente.
– Diferente como?
– Não sei explicar. Mas é.
– Faz amor comigo, por favor...

Ela enrosca as batatas das pernas por trás do meu tronco, me arranha a dorsal e esgarça minha camiseta que fica presa ao redor do meu pescoço, numa manobra de sedução que mais parece um golpe de judô do que uma cena cortada de Nove semanas e meia de amor. Sabidamente sou mais forte do que ela, mas Juliete está tão obstinada a levar uma penetração que as potências meio que se igualam. Ela se engancha toda e monta em mim como se eu fosse um touro malcriado, ficando então com parte da minha roupa nas garras, ao que me desvencilho. Aí consigo ficar de pé, vermelho de raiva, todo despenteado e com a barriga exposta.

– Chega disso, sua louca! Me dá minha camiseta, caralho.
– Pega aí, seu bicha. – Ela chicoteia meu rosto duas vezes com o pano e depois joga violentamente a peça na minha direção. – Está feliz agora, seu broxa?
– Isso dói, sua vadia!
– Não me chama de vadia! – Juliete berra me esbofeteando. – Seu broxa, bicha, idiota, molenga, babaca!
– Não sou broxa só porque não quero te comer. E nem bicha.
– É sim! E some daqui, seu imbecil! – a doida se contorce na cama, furibunda pelas ventas, como uma criança mimada que não ganhou o brinquedo mais caro num corredor de supermercado.
– Não adianta espernear – digo, tentando desvirar minha roupa do avesso, com uma boa dose de dificuldade. A garota dá faniquitos, produzindo uns sons esganiçados, como se tivesse um apito preso na garganta. É uma espécie de “grrr...” agudo e endiabrado.
– Que raiva, que ódio eu tenho de você! Aprende um negócio, Santiago. Quando uma garota está nervosa e em pânico porque o irmão dela está desaparecido, e quiser transar contigo para se acalmar e se distrair, não importa, seja como for, você tem o dever de foder ela, entendeu? Seu imprestável!

Escutamos a fechadura sendo revirada e ambos fazem cara de alerta, saindo do quarto apressados, desajeitados e trombando um no outro, a caminho do aposento de convivência.

– Oi... – Rodrigo abre a porta vagarosamente, confuso e assustado, encaixando no esquadro uma enorme mochila de acampamento erguida às costas.
– Porra, Rodrigo! Onde você estava? – pergunta Juliete, socando o braço do garoto.
– Eu que pergunto, o que você faz aqui, Mana? Quem é o sujeito aí? – aponta pra mim, de modo curioso e sereno, sem hostilidade.

Ela olha pra mim, como quem esqueceu deste detalhe enorme parado feito um pudim na frente de toda a irmandade. E, ops, Juliete não ensaiou uma justificativa para minha presença ali.

– Ah, esse é o Santiago, um amigo meu. Estava comigo. Atrás de você, seu irresponsável de merda! – E mais safanões. Hoje ela está tinhosa.
– Hum – o irmão dela grunhe maliciosamente, e depois acena com os olhos.
– Não se trata disso, Mano – Juliete se apressa em explicar. – Ele até é gay...

Dedico um olhar encolerizante em sua direção, que me devolve sobrancelhas enfezadas, além de uma queixada torta, caracterizando a feição insolente na qual Juliete se especializou.

– Então. Ele não parece gay... – Rodrigo conclui por si mesmo. Gostei do cara. – Por que ele está sem camisa?
– Por causa do calor – respondo no gatilho.
– Mas está dezesseis graus lá fora...
– Onde diabos você se meteu, afinal? – Juliete tenta dissuadir o rumo da conversa, toda errada.
– Fui para os cânions com meus amigos, Ju. Sai do meu pé, não enche meu saco!
– Custava dar um telefonema, deixar um bilhete?
– Bem, mistério resolvido. Eu já vou indo. É um prazer, Rodrigo. Já ouvi muito sobre você.
– Pois é, eu também. Falou... – ele diz enquanto apertamos as mãos.

Juliete me escolta até lá embaixo.

continua...