– Eu preciso de você – ouço então. Por que não me surpreendo?
Escutaram isso? Juliete precisa de mim. Ela precisa de mim. Ela precisa de mim. Ela PRECISA de mim. De mim, ela quer dizer, de um pouco mais da ternura do velho Santiago. Ela precisa do Santiago, o Santiago Ventura. Eu (risos). E veja bem, não está precisando. Nada de gerúndios ou temporalidades. O que Baby Julie quis dizer é que sou necessário não só neste momento, nesta data, neste domingo sacal, às duas da tarde. Ela está carente de mim já há algum tempo, e seguirá a carecer, infinitamente. Porcaria, odeio essa minha mania besta de ficar interpretando cada construção frásica saída das bocas que me interessam, para que a sintaxe de algum modo venha a me favorecer. Por que não pergunto logo de cara sobre o que diabos ela está se referindo, afinal?
– Como assim “precisa de mim”, Juliete? – pergunto arduamente.
– Não posso falar agora, mas acredita em mim, Santi. Veste uma roupa e entra no meu carro.
– Não. Não vejo por que as coisas tem de ser sempre do seu jeito.
– É sério. Não estou de bobeira. Por favor, cara... – o timbre vai apoucando antes do fim da súplica, e a garganta dela dá um tinido aflito e choroso. Parece bem séria a coisa, sabe? Só que, pensando bem, tudo que vem dela parece sério. Não vou deixá-la me iludir.
– O que houve, Baby Julie? – espero uma boa desculpa.
– Que droga. Meu irmão sumiu... – a garota já está fungando quando libera a informação, e a frase misturada com lágrima, coriza e interferências vocais não me soa muito bem.
– Seu limão? Que limão?
– Meu IRMÃO, porra! Faz cinco dias que vou no apartamento e o Rodrigo não está lá. Acho que aconteceu alguma coisa com ele. Me ajuda.
Que exagero. Cinco dias sem dar notícias. O que poderia acontecer a um viciado em metanfetamina, pó e destilados, que deve pedir grana emprestada adoidado e atormentar a vizinhança? Hum. Bem, talvez eu entenda o desespero dela, olhando assim. Porém, o que a coitada espera que eu faça?
– Não espere o pior. Fique calma.
– Vou ficar calma, assim que você descer e me ajudar a procurar ele, ir na polícia, nos hospitais, sei lá.
Por que eu? Tenho cara de detetive particular, por acaso? Será que Juliete não se ligou que eu me borro todo com essas situações periculosas? Embora esteja me sentindo alucinadamente um pouco adulto, não sei nem capturar um camundongo, como ela espera que eu elucide um crime de verdade? Porcaria.
– Mas – sigo com minhas objeções – ...e seu pai? E o Maurício? E o... Homem de Ferro?
– Ah! Você acha que eles dão a mínima? Você acha mesmo que eu estaria rastejando no meio do asfalto se tivesse mais alguém mais com quem contar? Caramba.
São boas perguntas. Contudo duvido ferozmente que ela tenha cogitado qualquer outra pessoa antes de vir correndo até mim. Na minha cabeça Juliete veio direto. Eu sou a solução de todos os problemas dela, aparentemente.
– Tudo bem...
– Mas óquei, se você não quer me ajudar... – a fala lamuriosa dela se sobrepõe ao meu consentimento meio frouxo aqui de cima.
– Eu já disse que tudo bem, porra. Só o tempo de eu escovar os dentes e vestir algo – falo, câmbio e desligo.
Mas vestir o quê? Não tenho traje adequado para o evento. Talvez uma calça de brim meio esfarrapada nos joelhos, que pode me dar um ar de Hulk. Ou uma cueca avermelhada que posso enfiar por sobre a calça. Ou posso fazer furos no meu tapa-olhos e improvisar algum Batman meio esquisito dos anos setenta. Lembro também do martelo que o zelador me emprestou para suspender na parede aquela moldura com as capas do Pink Floyd desenhadas em bundas femininas perfiladas. Quem sabe eu vou de Thor, daí? Nunca pensei que um dia fosse precisar de um consultor de moda credenciado pela Marvel. Mas que nada. Sou obrigado a entrar numa ducha supersônica – porque domingo é o dia em que me dedico a feder livremente – e vou de Super-Santiago mesmo. Talvez o tênis sujo, o jeans velho, a camiseta da Patti Smith, o cabelo revolto e o crivo pendurado no queixo assuste alguém. Contagem regressiva: estou entrando numa fria em... dois lances de escada.
Entro na porra do Renault, e então eu e minha parceira batemos as respectivas portas com uma sincronia empolgante. Quase me sinto um personagem tarantinesco ou num romance policial do Bill Moody. É ridículo constatar internamente o quanto estou contente em vê-la outra vez, não importa a ocasião. Estou ofegante e elétrico, e ao menos posso fingir que o desaparecimento do irmão dela é a razão da minha agitação, só que também faço parte da turma que não dá a mínima, nem conheço o sujeito. O que importa é que estamos juntos novamente, prontos para outra aventura. Antes de arrancar, ela me pega segurando um gorro ninja de lã escura que catei na última passada pelo roupeiro. Juliete me questiona com as sobrancelhas içadas, como se eu fosse um retardado.
– Para o caso de precisarmos nos disfarçar, ora.
– Uhum – grunhe sarcástica.
– Esqueceu que sou especialista em gorros?
– Eu adoraria ter esquecido – diz.
Óquei, eu meio que sou um palerma. A garota faz os pneus uivarem, debutando a missão. Não pude deixar de notar os pés descalços pisando no acelerador e as sandálias jogadas no assoalho do carro. Que saudade eu estava daqueles pezinhos nus. E também de me acomodar neste banco e viajar de carona em seus dramas e turbulências, cuidando atenciosamente Juliete fazer as manobras com o volante, esmagar os pedais, entreolhar nos espelhos e acionar luzes piscantes que indicam para que lado essa história desajuizada está convergindo.
*
Rodamos o Centro atrás do irmão de Juliete. Passamos sua descrição básica para delegacias, hospitais, necrotérios em vão. Reviramos a estação de trem, o Mercado Público, as praças, o interior de salas de cinema pornô, embaixo dos viadutos, na prainha do Gasômetro, em escadarias. Interpelamos taxistas, pipoqueiros, moradores de rua, ambulantes, guardas municipais. Ninguém demonstrou muito além de um interesse esnobe e rasteiro. Quando o desespero já esmurrava o coração da garota, resolvemos ser racionais e ir até o apartamento esperar algum telefonema mórbido.
continua...