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» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(053)

Uma das meninas que trabalham na copa avançou de idade na última semana, de modo que ficamos até mais tarde no Sta Gemma Café, devorando a comida que sobrou, falando asneiras, distribuindo parabenizações e sacaneando uns aos outros. Mas não sou tão tapado assim. Eu sei que a organização toda esconde outro motivo: o quadro funcional da nossa cafeteria quase arruinada ficou abatido com meu sumiço e Rafaela tramou esse álibi para me animar, ficou bem na cara. Aline sempre odiou fazer 29.

Uma hora, repentinamente, todo mundo levanta e resolve ir embora, cada um procurando sua estação de ônibus. Só ficamos eu e ela. Vencemos mais alguns minutos que se transformaram em vários blocos de tempo incontroláveis em que nem assistimos o relógio cruzar as oito, nove e dez. Durante o evento todo, não vou mentir que ignorei Rafaela abrindo um vão a seu lado para eu enfiar minha cadeira, e aqueles olhares que efetivamente “não olham”. Mas também não sou caradura a ponto de afirmar que a garota estava, digamos, se inclinando romanticamente para mim durante a celebração; mas estava, isso sim, alisando as mãos nos cabelos com alguma frequência e rindo de coisas que eu falei que normalmente ela não riria, não porque sou desprovido de instinto para boas sacadas, mas porque Rafaela é endurecida pra cacete. Só que ela esteve de humor plumado hoje, talvez como todo o resto do pessoal. Qualquer um – possuidor de autoestima com maior estabilidade do que a minha, ultimamente – acharia que ela não estava só de xaropada, mas amolecendo suas guarnições. Só que este cara, esse galã charmoso e disputado para quem Rafaela levemente se insinuava não sou eu. E digo isso com toda certeza, mesmo sendo o único rapaz na mesa.

Bebemos o conhaque que usamos nas receitas gaulesas. Corrigindo, eu bebo o negócio, dose a dose, quase levando a garrafa quadrada à bancarrota. Rafaela só ingere água, de frente pra mim, sentada na cadeira invertida, com os cotovelos no encosto e uma feição contrariada de tédio, enquanto conto toda a história de Juliete, desde quando a vadia deu as caras aqui no café e blá-blá-blá, vocês já sabem. Juliete, Juliete, Juliete. Até eu estaria achando essa enrolação chata, ridícula e juvenil, só que já meio que estou embriagado, além de, dá pra ver, repetitivo e solitário.

Rafaela, minha mais nova amiga do peito que eu adoro de todo o meu coração nutrido e embalsamado de tanto Domecq, me joga por cima de um de seus ombros miúdos e tímidos e promete me levar pra casa, já ficou tarde demais. Ela fecha a cafeteria inteira enquanto me consolo no meio-fio, sem conseguir sentir as duas mãos na minha cara dormente.

*
Chegamos lá. Mas há algo de errado. Já sei o que é. Não deixo a garota retornar sozinha pra casa a essa altura da lua, não importa se fica a cinco quadras daqui e o movimento da Cidade Baixa ainda não afunilou. Eu sou um cavalheiro, ou costumava ser. Ofereço uma carona a pé, ela rechaça, diz que vamos perder a viagem pois não tenho condições de me localizar, e aí terá de me conduzir novamente até minha porta, e vamos ficar indo e vindo pela rua escura, infinitamente. Não interessa, faço questão. Rafaela só dá o braço a torcer após enfatizar que sou um pé-no-saco, e não só quando estou triste e tropeçando nos meus calcanhares por causa de uma mulher. Seguimos para o apê dela.

Chegamos lá. Eu tento me auto-despachar, mas ela fica uns dezesseis minutos me convencendo a subir. Tudo bem, eu entro na casa dela pela primeira vez em quatro anos de antipatia recíproca e coleguismo frívolo atrás de um balcão.

*
Então Rafaela me serve um café tinto e forte (porque onde mais arranjaríamos uma iguaria dessas?) e aí me sinto melhor, mas estranhamente permaneço. Ela põe o disco de um cantor que eu não conhecia, com a voz visguenta e um dedilhar malicioso no violão. O som é bom e tudo fica agradável, com minhas pernas esticadas no sofá e meus tênis imitação de All-Star no chão. Rafaela descarta o uniforme profissional e se agasalha num moletom caseiro, depois ajeitando o corpo no mesmo sofá, sentada enviesada sobre os próprios tornozelos, voltada para mim e conversando comigo, que reluto à vontade de adormecer imediatamente, pulando o aqui, o agora e o que pode rolar até o final da noite. Rafaela me fala sobre as glórias radiofônicas do tal do cantor que estamos apreciando.

Como ela pode não estar apavorada? Céus, estamos na sala de tevê do lugar onde ela mora, um lugar onde eu já deveria ter frequentado, se fosse bem-vindo como parece que estou sendo essa noite. E estamos falando de assuntos íntimos e embaraçosos e de vez em quando o pé dela roça no meu e eu tenho certeza que jamais, em todos esses sofríveis anos de convivência, essa garota usou essa tonalidade meiga de voz, que parece atrair alguma espécie de faro, tendência ou vocação, não sei, para chegar mais perto e usar a minha língua de algum jeito meio indeciso e desajeitado. Só que eu acabo mesmo optando por pegar no sono, coisa que pode ter a decepcionado, ou decepcionado toda uma cultura de macho-dominante-que-precisa-diariamente-se-autoafirmar.

Só que ir pra cima de Rafaela pode embaralhar mais as coisas. É como pegar um avião e descer num país exótico tipo a Tailândia ou a Malásia, sem nunca ter dado uma voltinha em Montevidéu, que fica bem mais perto e você pode até ir de carro, se quiser, pois há pontes pra lá e tudo. Seria arriscado passar do estado eu-e-Rafaela-não-nos-suportamos para essa assustadora Neverland onde eu e Rafaela faremos algo parecido com sexo e a coisa passará de insuportável para constrangedora. Existe um oceano entre uma coisa e outra, sabe?

Fiz bem em dormir e deixar tudo como está, pois já fomos longe demais, de modo que antecipadamente me sinto horrorizado com o clima, a perspectiva e o cenário, mesmo sem, você sabe, o encaminhamento da coisa, ou seja, sem a transa, sem o “acordar acidentalmente abraçados com cheiros não tão bons quanto ontem”, sem os arrependimentos e sem a escassez de telefonemas nos dias consequentes. Seria mais um artifício para despistar a merda dos meus sentimentos por outra garota, e eu acho que, na boa, pior do que mentir pra si mesmo é mentir pra si mesmo mal pra caramba. Sexo gratuito estraga tudo.

*
Na manhã seguinte, após experimentar uma geleia de morango com torradas e chá de hortelã de rosto acanhado, indisposto e com vergonha, vou pra casa com as mãos nos bolsos da calça amarrotada e me achando super independente, só porque resisti à tentação de levar mais uma pra cama – ou levar um fora monumental, bem mais provável. É que meio que estou querendo retomar algumas coisas que ficaram pra trás, sei lá. Lembro bem. Houve um momento, na minha infância ou na minha adolescência, em que escolhi ser um bom garoto, respeitar e valorizar as meninas e essa coisa toda. Mas as coisas fugiram do controle e eu virei isso. Para continuar sendo o que sempre fui, tenho de mudar.

Tudo bem, uma parte não muito espaçosa de mim pode estar agora admitindo que, porra, talvez eu não tenha dado um bom exemplo, talvez eu tenha mesmo é frustrado uma garota abandonada que na verdade não queria respeito e valorização e que tais, mas sim ecoar por aí que sua turma pode também sentir tesão e dar de ombros para o protocolo culposo do dia seguinte, a cultura ocidental e sei lá eu mais por que existem essas garotas que não dão de jeito nenhum. Mas essa inércia tem muito mais a ver comigo do que com Rafaela, que no fundo é bacana, é gata e deve ter um lugarzinho quente, aconchegante e maravilhoso disposto a acolher um homem bom. Ela merece ser amada. E seria fácil, se fosse uma questão de meritocracia; e não de sorte, de estar no lugar e na hora certa, com alguém mais sério e limpo do que ando conseguindo ser, falando de forma bem autocrítica.

Não importa o quão desiludido, incrédulo e esperto você foi ficando. Sempre haverá uma fração dentro de você que vai acreditar. Só que essa alíquota ingênua, sonhadora e otimista não estava comigo ontem, nem no bolso frontal da minha camisa marca-diabo e tampouco escondido na cueca decente que vesti antes de começar o dia. Talvez eu tenha esquecido no meu bidê, ao lado do cinzeiro e da luminária. Mas não se preocupe Rafaela, que você ainda vai encontrar um cara bacana. E aí vai trocá-lo por um australopitecos mais másculo e imbecil, um desses sujeitos sócios desse mesmo clube do qual, há algum tempo, venho tentando atrasar as mensalidades.