Amanheço com o telefone. Vou tropeçando até o banheiro, onde sinto que o deixei ontem à noite. Estou enganado quanto à localização do aparelho, mas não em relação ao emissor. Está na cozinha. É ela, confirmando minha expectativa, minha intuição, o destino, ou seja lá como chamam isso.
– Oi, te acordei?
– Não – respondo de timbre falho e pigarrento.
– Conheço bem sua voz de sono.
– O que foi? Por que tá me ligando? – questiono, sentindo uma veia do meu cangote pulsando como um cavalo galopando a favor do vento.
É isso que você ganha, supostamente, quando reencontra uma de suas paixões antigas. Diálogos consequentes, requerimentos de desculpa, novos levantamentos de dúvidas, análises retroativas. Nós rapazes, geralmente, achamos que o melhor é esquecer e deixar pra lá essas situações delicadas e chutar a bola pra frente, na arquibancada. Para as garotas, é o que concluo, funciona um pouco diferente, sem o isolamento térmico em torno do coração. Elas querem te telefonar pra dizer que viram você, que vocês se olharam simultaneamente, como se isso já não fosse bastante inegável. Eu sei que Juliete se sentiu uma geladeira, tanto quanto eu me senti um caldeirão naquele momento. Mas a gente concordou, ali na hora, que não faríamos nenhum alarde facial extremo, que agiríamos como fôssemos meros conhecidos. E foi assim. Então por que não manter a conduta nos próximos capítulos? Aliás, pra quê novos capítulos? Você não pode fingir que não conhece alguém na rua e na manhã seguinte ligar para essa pessoa. (Esses dias o Zeca da locadora de filmes estava na fila do caixa eletrônico e eu fiz que não o vi; e depois eu não, você sabe, “E aí, cara, tudo óquei? Por acaso você me viu fingindo não te conhecer ontem no Banco Santander?”) Não faz sentido querer explanar sobre o que aconteceu, mas... garotas, hein?
– Eu só não queria que você tivesse a ideia de errada de mim.
– Tudo bem, eu não estou pensando nada.
– Ai, droga, droga, droga, droga... – ela sussura do outro lado. – Mas, então, está tudo bem contigo, mesmo?
– Já estive melhor – largo essa intencionalmente, para que ela se sinta mal. Eu sou um pobre-diabo mesmo. – Por que você está me telefonando, o que você quer, afinal?
– Eu não sei.
Ela diz não saber porque me liga, mas sabe. É como não saber que o sol está atrás das nuvens, só porque o dia acordou nublado.
– Droga, droga, droga, droga... – Juliete continua com isso de “ai, droga, droga” e isso está me irritando com profundidade.
– Olha, eu preciso ir – interrompo. – Tenho de trabalhar, não tenho a vida ganha.
– Certo – Juliete desliga, engasgada e melancólica.
Quanto você quer apostar que eu nunca mais ouvirei a voz dessa mulher?
*
Recém entrei na minha sala. A menina nova me passa um telefonema particular. Adivinha quem é?
– Então vocês voltaram? – atendo na lata.
– Hum... – Juliete parece confusa. – Oi. Sou eu outra vez.
– Eu sei. Então, vocês estão juntos novamente?
– Sim. Oficialmente – a garota amortece o timbre no oficialmente, decerto querendo me dizer algo. Mas eu sou tapado demais pra captar.
– Que legal. Eu adoraria te desejar felicidade.
– Eu posso imaginar.
– Bem, e sexualmente?
– Como? – ela me faz repetir a pergunta, talvez querendo ganhar tempo, talvez incrédula.
– Você disse que reataram oficialmente. Quero saber se estão juntos sexualmente também. Não se faça de louca, você sabe o que estou falando.
– Ah, qual é, fala sério!
– Estou falando.
– Olha... você tem certeza de que quer saber disso?
– Quero. – Pelo menos eu acho.
– Bem. Sim. Claro.
Óquei, acabo de me dar conta de que não queria saber disso, a julgar pelos ruídos estomacais.
– Não, Juliete. Não quero saber disso. Pare de falar.
– O que você esperava?
– Nada. – Na verdade eu esperava que ela dissesse que isso nem passou por sua cabeça. – Vamos trocar de assunto.
– Óquei...
– Por que você tá me ligando?
– Já te disse. Eu não sei.
– E por que você reatou com ele?
– Eu não sei...
– Caralho, você não sabe nada?
– Você só me faz pergunta complicada. Se você quiser saber, apesar de todas as circunstâncias, não voltamos emocionalmente.
– Hum. Não, não me ajuda em nada saber disso.
Bato o telefone com muita força, mas sei que toda intensidade e toda a dramaticidade do gesto será em vão. Isso não vai ficar assim. Se eu conheço bem esse filme, a garota que faz a protagonista vai me cercar, no telefone ou no interfone, no café ou lá onde moro, a pé ou de helicóptero (sei que essa última parte parece exagero, porém não duvido de mais nada). Agora, pela minha integridade mental, quem precisa sumir sou eu.
*
Entro no meu quarto, o 816. Capoto de bunda na cama enorme e fico estudando as paredes claras, em busca de algum traço residencial, só que tudo aqui é comum e ordinário. Temos apenas aquelas figuras abstratas embaixo de luzes quentes, como em todos os cômodos desta rede hoteleira. Invisto sobre o frigobar e sirvo um refrigerante de laranja num copo de uísque e fico lamentando as coisas que, na afobação de abandonar meu próprio apartamento, esqueci de enfiar na mochila. Esqueci da obra de Martin Amis no banheiro, mas não me torturo demais, não estava curtindo muito mesmo. Mas fico puto por ter trazido toalha, após descerrar uma porta e seis mil toalhas brancas cairem sobre minha testa. Que tipo de imbecil traz toalhas para um hotel, por mais vagabundo que seja? Minha gaita, meus óculos, minha identidade estão comigo e eu me sinto afagado. Meus cigarros, um player com as canções pop e melequentas do Eric Clapton, e meu telefone ficaram para trás, coisas que podem me fazer mal. Não quero que ninguém me encontre pelos próximos tormentosos dias, o três estrelas Mundi Express é meu novo e provisório lar, enquanto a grana der e o pó baixar. Pedirei a alguém da recepção que daqui a um punhado de horas me desperte e invento um motivo infeccioso para não trabalhar. Sabe, no Sta. Gemma Café também fico atacável, mesmo agora exercendo minhas atividades num cubículo mofado dos fundos.
Após um longo, oportunista, revigorante e afeminado banho com hidromassagem, escolho um monte de roupas para sair. Ainda é junho, mas está fazendo um frio grotesco e germânico, especialmente na alameda onde está plantado meu hotel, no coração de Porto Alegre, aonde a corrente fresca do rio passa lambendo o pescoço de quem teve a audácia de dar uma banda perto do cais. Não posso deixar de comparar a noite com ela. Obscura, vazia, fria e seca, e mesmo assim meu pé está na calçada, e eu envolvido pelo relento, atrás de imprevistos. Na falta de um cigarro, trago na boca minha gaita e vou ecoando “Love Me Do” pelas trevas urbanas da noitada, competindo com o tinido macio que vem do Guaíba. Antes de descer as escadas para pegar o último trem, uma garota bonita e vulgar diz que essa música lembra seu pai e me deixa um trocado. “Someone to love, somebody new, someone to love, someone like you...”