O ponto alto do meu mês é estar num bar, no mesmo de sempre, ouvindo um dos meus amigos confessar que teve um mau dia. Engraçado, as pessoas à minha volta estão habilitadas a se queixar da vida porque não dormiram muito bem ou discutiram com uma autoridade ou uma calça do inverno passado está apertando na barriga. Para mim, tudo isso é normal, lucrativo até, a julgar pela merda incrustada em torno de mim nos últimos tempos. Para ter direito a reclamar do meu dia com justiça, no mínimo eu precisaria estar num pouso forçado de um monomotor ou ser esmagado por um fusca ou contrair algum vírus africano. Mas tudo bem. Vamos lá.
Estamos tomando uns drinques e reclamando da vida, quero dizer, das garotas, basicamente. Joel não consegue trepar e Marcus aparentemente não está nem um pouco a fim de sair hoje com a coitada que já lhe enviou uns quatrocentos torpedos só no início dessa noite de reunião dos Três Mosqueiros.
Eu, você sabe, estou pensando em desistir de Juliete, depois de três semanas de buscas, perseguição e recados terrificantes na caixa postal da garota. Sei que andei irreconhecível esses últimos dias, desempenhando ações de reputação deplorável, merecedoras de retrato falado ou medida cautelar. Na última vez que Baby Julie atendeu minha ligação a conversa não foi muito longe, e acabou com ela perguntando “Você acha mesmo que ainda pode me fazer feliz?” e eu dizendo “É claro que não, mas isso nunca nos impediu de ficar juntos”. No fim, Juliete acabou dizendo que lamenta muito, porém não pode mudar quem eu sou. Não deu tempo de dizer, porque ela desligou na minha cara e tudo, só que mal sabe ela que é isso mesmo que qualquer rapaz na minha condição precisa. E para quê serve ter uma namorada, senão para consertar um homem? Fazê-lo parar de sair, de gastar, de fumar, de desferir cantadas horrorosas num bar imundo, já às sete da noite, quando deveria estar fazendo algo produtivo para a sociedade, como plantar árvores, separar lixo ou manter as crianças longe de entorpecentes, ou sei lá eu o que fazem os homens úteis nas quintas-feiras.
Quero saber o que Marcus e Joel acham disso.
– Ué, mas eu pensei que ela já havia acabado com tudo.
– Bem lembrado, Marcus – diz Joel. – Ela já não tinha sido bem clara dizendo que não queria nada sério contigo, que você era estranho e nada confiável?
Estranho e nada confiável. Parece um pouco comigo, no mínimo um irmão gêmeo. Óquei, talvez ela tenha dito isso.
– É. Sim, de fato. Mas não quer dizer que tudo acabou – explico. – Na verdade estava pensando em parar de correr atrás. Literalmente falando.
É isso aí! Acabo de me decidir. Parei de ir atrás, eu tenho meu orgulho. Quero dizer, não tenho, mas ela não precisa saber dessa parte.
– O sexo não era bom?
– Sim, Marcus. Era bom. Aliás, deve ser bom ainda. Mas não é isso que importa.
– Pra mim é – ele fala, e dá um gole antes de olhar as garotas no boteco.
– É que... sei lá. Eu acho que continuar com essa história, alguém ia acabar se dando mal.
– No caso você, não é? A tal Juliete não está nem aí – conclui Marcus, com os requintes de crueldade que lhe são peculiares. – Aliás, você já está se dando mal. Olha pra essa sua gola amarrotada. E essa jaqueta horrorosa? Você está um trapo, Santiago. Sabia disso? O que esse diabo fez contigo, cara...
– Isso também não tem importância, Marcus – falo, mas não consigo não lembrar daquela canção “We Gotta Get You A Woman” (We got to get you a woman / We better get walking / We're wasting time talking now...) Canto mentalmente por uns segundos.
– Para mim tem – diz, agora checando as moças à esquerda.
– Não dá pra conversar contigo. O que você acha, Joe?
Ele me dá de ombros. Parece magoado.
– Ah, cara. Eu e a Marta estávamos superfelizes porque tínhamos um casal para nos acompanhar nos lugares – desabafa. – Lembra aquele dia em que fomos todos ao cinema ver aquele filme do Spielberg?
– Sei. O que tem?
– Fizemos sexo naquela noite. Tudo bem que não foi no drive-thru do McDonald’s, foi em casa mesmo, na nossa cama de casal, antes de dormir. Mas igual, conta pontos. Era disso que estávamos precisando para apimentar nossa relação.
– Desculpa, Joe. Mas não posso manter um relacionamento com uma garota só para levá-la no cinema com outros casais quando algum amigo meu quiser se dar bem. Não somos assistentes sociais ou coisa parecida.
Ele parece desapontado.
– Tudo bem. Desista dela, então. Mas depois não vem choramingar que está sozinho.
Dou de ombros. Quando foi que eu choraminguei por estar sozinho? Lembro apenas de uma primeira e única vez, e foi no colo do meu obstetra. A partir daí, tive tempo de sobra para me acostumar.
Então Joe põe na mesa uma outra questão, que nada tem a ver comigo ou comigo e com Juliete, mas sobre ele, Marta e o que ele pode fazer, afinal, para flamejar o namoro frígido dele. Eu sei lá. Marcus rapidamente sugere que Marta seja lésbica e manda Joe se danar com essa lenga-lenga. Então todos ficamos quietos, apenas olhando as desgraçadas das fêmeas na volta, com nossos ares desesperançosos.
– Tive uma ideia. Por que você não tenta levar uma outra garota pra cama, Joel? – sugere Marcus.
– Como assim? Tipo, trair Marta?
Marcus encolhe os ombros e mostra as palmas das mãos, como se não houvessem alternativas. Esse meu amigo é um germe. No entanto, talvez não exista outro meio mesmo, como eu vou saber? Não entendo bulhufas sobre o assunto. Nunca nenhum namoro meu teve tempo de esfriar eroticamente. E, olha, não sei se isso é elogiável ou uma bosta.
– Não vai dar. Aliás, nem saberia como conversar com uma hoje em dia – Joe rechaça fazendo careta. – Vocês sabem quanto tempo eu não flerto com uma garota?
– Fica tranquilo, Joe. Acho que ninguém “flerta” com ninguém desde 1953.
[TODOS NÓS JUNTOS]: – ZZzzzZZzzzZZZzzZ...
Dou um demorado sorvo na minha garrafa de Sol, largo uma nota de vinte na mesa e vou andando.
*
Acordo num solavanco. Meu ônibus noturno vem pela Oswaldo Aranha, dobra numa esquina e quando inicia uma subida, é minha hora de descer. Para completar meu trajeto preciso contornar o Parque Farroupilha e enfrentar a tortura que é passar defronte a um tradicional bar da cidade, onde só entram escritores. Lá eles se reúnem para amaldiçoar os best-sellers, discutir a morte do romance e disputar partidas de Hemingway versus Faulkner no pebolim. Deve ter um nome oficial mais decente, mas todos conhecem por “Bar dos Podres”.
Eu, com toda a minha experiência como ghostwriter e roteirista de cinema pornô, é claro, estou desautorizado por aqueles olhares repressivos e risinhos empafiados a deixar minhas pegadas no território dos grandes sabedores do novo século. Não que eu queira entrar, também.
Porém, só em momentos íntimos de purgação, apenas para mim, confesso que olho para o interior do santuário toda vez que contorno por aqui. Me apoio no tronco desse pé de sicômoro do outro lado da rua e durante alguns minutos morro de inveja de ser um boçal pretensioso como eles; e não esse membro do proletariado que sou, sem nenhum estudo afora um cursinho vagabundo de línguas. Mas também, olha só, não é que eu admire qualquer um deles, muito porque nunca li patavinas desses caras. Não leio ninguém que tenha nascido pra cá da década de 1950 e não escreva um único anglicismo (só de pensar que suas histórias de amor têm sotaque de Tramandaí e não de Frankfurt, eu já começo a gemer de dor no esôfago). Na minha opinião, escritor bom é escritor morto. E seria mesmo bom para a literatura que alguns deles morressem logo.
Eles fazem parte da pior raça que existe: os escritores felizes, que posam para anúncios de refrigerantes, participam de festas badaladas do gênero, posam de comedores em seus conversíveis figurões por aí, desfilando suas vidas auspiciosas e radiantes e elitistas, com aqueles penteados de quem se lava para dormir depois do sexo. E não escrevem bulhufas, demoram treze anos pra concluir uma novela que seja.
Os caras de escrita mais escruchante que eu botei os olhos eram infelizes por natureza, de carteirinha, por predisposição genética, politicamente miseráveis mesmo. Se por acaso você é um escritor feliz, meu amigo, vá a um terapeuta ver o que há de errado com sua cabeça. No duro, depois que você devora a biografia de alguém, deixa eu ver, tipo Thomas Mann, e depois junta os pontos devorando algo dele (como Tonio Kröger, sabe?) cara, você nunca mais vai querer saber desses sujeitos que jamais sofreram no âmago, seja por quererem comer a própria irmã ou porque foram parar numa solitária apenas por serem secretamente gays em mil oitocentos e qualquer coisa. Esses sim valem suas olheiras. Pode apostar.
Mesmo assim. Um dia eu ainda entro naquela porra lá. E farei toda a questão de subir numa mesa e gritar para todos o quanto eu sou profundamente triste, mal-afortunado e desgostoso com a vida. Nossa, já posso até ver todos aqueles dentes de ouro sorrindo ironicamente de pura cobiça e veneração. Serei o grande romancista que começou escrevendo diálogos sucintos para a indústria pornográfica. Não vejo a hora, vai ser bonito.
*
Não sei ao certo se queria mesmo estar naquele bar de escritores. Mas sei que eu não gostaria de estar aqui, de chegar em casa e sentir esse cheiro de Juliete nas paredes desse meu pobre apartamentinho. Não importa o quanto você lave os lençois ou escancare as janelas, mesmo com todo esse frio que vem fazendo. Está sempre aqui, à espreita como um ladrão de sanidades, me esperando retornar do trabalho para mais uma noite de tormento e sono agitado e falta de apetite. Esses dias esbarrei com uma menina com a mesma fragrância, no setor de pizzas congeladas do Zaffari. Fiquei tão desorientado e saudoso que a segui por gôndolas e gôndolas, até ela estacionar na prateleira onde exibem tofu. Como se eu fosse de comer tofu. Nem em troca de viver cem anos, ainda assim a vida seria curta demais para ingerir tofu. Uma vez Juliete me obrigou a comer tofu. Eu adoraria estar agora jantando tofu. Será que tele-entregam tofu?