– Oi. Boa noite. Cheguei – ela se anuncia, pisando leve no assoalho.
– E aí? – respondo sem me privar da tevê.
– Eu.. estava... com o Maurício – diz, num tom de voz tenso e meticuloso, que sugere prestação de contas. Maurício até ontem era o ex-namorado escroto dela. Agora não sei.
– Legal – balbucio. – Vocês vão voltar?
Ela bufa. Vai ver queria um escândalo, um sintoma de possessão, amor e insegurança. Não entro na dela.
– Você quer que eu volte pra ele?
– Tanto faz. O que for melhor pra você – dou de ombros, me ajeitando na poltrona.
– Às vezes parece que é isso que você quer, sabia?
– Como se o que eu quero fosse levado em consideração num caso desses. Eu querendo ou não, você vai voltar com ele, se decidir que é isso que você quer.
– Se eu não voltei ainda não foi por falta de convite. Ele estava praticamente rastejando atrás da mesa.
– E vai ser por que, então? – pergunto, pela primeira vez virando meu pescoço para encará-la.
– Nossa, você é tão estúpido e babaca! Sabia que você é um infeliz amargo de bosta, Santiago?
Sabia, é claro. Sei quase tudo sobre mim. Julie, furiosa, bate a porta e se tranca no banheiro, após revirar umas coisas numa das três prateleiras que ela surrupiou do meu roupeiro na maior caradura. E nessa hora Ray Romano larga uma de suas metáforas esportivas impagáveis e eu estou me sentindo mal demais para rir pela milésima vez. Ela diz que sou amargo e infeliz e babaca como se fosse fácil. Ninguém sabe o duro que eu dei para chegar a esse esplêndido patamar de sofrimento e desgosto e autopiedade. Às vezes me pego de saco cheio de ser tão infeliz.
Três quartos de hora depois, ela finalmente se desentoca. Sabe, eu estava recomposto, surfando numa onda amistosa, me sentindo pronto para fazer as pazes, o que no meu caso é quase um nirvana. Mas sou obrigado a mudar de planos quando vejo que Juliete está vestida para matar.
*
Fato: não me sinto confortável em festas. Aniversários, formaturas, jantares, bota-foras, bailes de casamento, anos-novos, baladas, orgias (embora ainda não tenha participado de uma, sei que vou pôr defeito em tudo). Não consigo fugir de me sentir meio mongol nessas situações, e normalmente passo a noite parado num canto, abraçado num pilar feito um ursinho coala que esqueceu de tomar o anti-depressivo e só quer voltar o quanto antes para seu galho na árvore. Fico ali, matutando pensamentos darwinianos e admirado com o potencial que as pessoas têm para ser frívolas, esnobes e dissimuladas.Mas mesmo assim tive um acesso de hipocrisia aguda quando vi Juliete de vestido azul acentuando aquele quadril campeão do mundo, e elegendo brincos refinados claramente para sair pela noite. Foi aquela coisa: “Mas você não gosta de festas!”/”Mas custava você me convidar?” e o resto você sabe. Enfiei umas calças e me dei o trabalho de passar a ferro aquela camisa que normalmente potencializa minha autoestima, em casos de urgência. Fui junto na tal da festa.
*
Depois que o fervor sanguíneo vai descendo ao nível da minha tireoide e a brisa me acalma, é que me dou conta. Juliete está linda, assim um pouco mais arrumada do que tenho a visto nas últimas semanas. O moletom da Hello Kitty deu lugar a saltos que a deixam mais alta do que eu. Ela fez um negócio no cabelo, meio que duas tranças frontais bem fininhas que se encontram na nuca e parecem segurar toda a estrutura capilar. Parece uma neo-hippie ou coisa assim. Ela toca a campainha e eu seguro a garrafa de José Cuervo que trouxemos, à medida que não consigo parar de me sentir um par inadequado para ela. É certo que a turma lá dentro vai notar. Talvez até me apontem e gargalhem baixinho quando eu passar.Demoram três décadas para atender a porta e minha perna não para de sacolejar. Minha garota se vira pra mim, ajeita uma das minhas mechas e levemente encosta dois dedos nos meus lábios, num beijo simbólico, para não estragar o batom.
– Eu te amo, Santi.
– ... – (Glup!)
Antes que eu me decida sobre como responder um troço desses à altura (“Eu também? Obrigado? Como assim me ama, mulher?”), um rosto largo, muito louro e muito maquiado e muito sorridente finalmente nos abre a porta.
É um casarão de dois andares, com espaço amplo e enormes janelas envidraçadas que dão uma visão panorâmica para um jardim fantástico e uma piscina ornamental. À minha direita tem um bar equipado onde preparam coisas com gelo e à esquerda há uma sala rebaixada em dois degraus, com extensos sofás de couro branco e almofadinhas de cores vibrantes, cheios de gente com roupas caras pra burro e óculos estranhos, todos sentados em cima e emitindo opiniões. Me sinto num episódio da primeira temporada de The O.C., o que não me anima muito.
É batata. Com cinco minutos de socialização, já estou isolado de costas para uma parede na companhia de uma planta verde e empinada, enterrada num vaso chique – gostei dela porque foi o único ser vivo com o qual me identifiquei de imediato –, com um copo plástico meio cheio de cerveja quente que um fanfarrão me enfiou nas mãos. Tudo me indica estar no corredor que dá para um banheiro, acho eu, ao constatar que volta e meia garotas passam em duplas de bracinhos dados, com seus vestidos curtos e suas meias-calças e seus perfumes enjoativos de morango e outras padronizações. Elas me analisam com olhares forçando sensualidade, decerto me achando exótico como um lêmure almoçando restos na praça de alimentação de algum shopping da Zona Sul. Eu não sei quem é quem. Com seus penteados, roupagem e sapatos todos iguais. Parece que antes da festas todas se combinaram de se arrumar juntas e foram expelidas de uma máquina de fazer sorvete do McDonald’s. Casas grandes e lindas e cheias de janelas. Mas sem mobília e nem jardim. É assim que enxergo a maioria das pessoas.
Há seis metros da minha localização, Juliete conversa num grupinho faceiro de amigos e amigas que eu nem imaginava que ela possuía. Ela nunca me fala de ninguém, exceto daquela Larissa que conheci no Eddie’s Bar, que na avaliação dela é a menos superficial de todas as suas poucas amigas. É a primeira vez que tenho contato com a vida no planeta dela, até hoje só tínhamos nos relacionado na minha confortável zona onde fico retido e entrincheirado contra tudo e contra todos, e agora posso entender por quê. Ela queria adiar o máximo esse sentimento de humilhação e labirintite que agora está tomando conta de mim. Num momento de distração, me pego trocando todos os livros que eu li, de O Grande Gatsby a qualquer coisa do Hemingway por toda a pompa circunstancial dessa galera. Já não sei quem é o imbecil aqui, eles ou eu, talvez seja a cerveja.
E esse é meu modo de curtir a festa. Secretamente invejar seus carros estacionados, seus abdômens, seus cabelos lisos, seus pais médicos ou empreiteiros ou super-heróis, seus diplomas, suas experiências sexuais, seus espíritos ignorantes e leves e despreocupados com o futuro, suas viagens, seus Apple, seus fígados. E esta é a pior parte da minha vexação e rebaixamento: não é porque sou pobre, normal e apático e eles são ricos, tatuados e risonhos. É porque uma parte de mim, talvez só uma ponta, quer se juntar a eles e deixar pra trás tudo que eu sou, meu gosto musical e fílmico, as garotas com quem saí, os lugares por onde andei, meu temperamento macambúzio que tanto descontenta Juliete (eu adoraria estar apto a fazê-la mais feliz e dizer coisas como eu te amo com facilidade). E isso é péssimo. Eu me sinto como Mogli desapontando toda uma alcateia de lobos que me criou, fazendo esse esforço para ser feliz e ajustado nesta nova civilização a que estou sendo introduzido – estuprado, quase. Onde foram parar meus ideais, meus princípios, minha origem, peraí, onde foi parar Juliete?
Aquele grupinho se dissipou, ela não está no banheiro, nem no bar, tampouco na sala de estar e nem no entorno da piscina. Me dá uma coisa no baixo-ventre que sobe até minhas pálpebras, que sofrem tremeliques de pânico. Perdi minha namorada.
continua...