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» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(045)

Estou uns vinte minutos parado em frente à minha casa, com medo de entrar. Juliete está lá, é o que posso presumir a partir da lâmpada acesa e das imagens distorcidas que a tevê está projetando no teto do meu quarto, no segundo piso.

Por que não quero entrar, que bobagem é essa? Você deve estar perdido no meio da história, mas acredite, eu também estou. Faz dez dias, eu disse dez dias consecutivos que a garota aparece aqui, dorme na minha cama, sai para fazer compras e resolver burocracias, come da minha comida, puxa da minha descarga, ocupa minhas prateleiras, tudo como se um homem e uma mulher sob o mesmo telhado fosse uma coisa natural, como se fosse uma vontade de deus uma coisa dessas. Não sou especialista em mandamentos bíblicos e esses troços, mas se foi mesmo deus quem teve a ideia, bem, o todo-poderoso é outro que esqueceu de falar comigo.

Não lembro de ter a convidado, não lembro de Juliete sugerindo morar no meu quitinete. Ela simplesmente... vem. Abre a porta, fecha a porta, guarda a cópia da minha chave na bolsa, traz um pacote com mantimentos, cada dia uma sacola com mais roupas e sapatos e acessórios, limpa meu vaso sanitário, espana minhas coisas, junta meus calções de dormir, esconde meus cinzeiros, tira minhas pantufas do caminho e quando chego em casa, pelas seis ou sete, não acho mais nada do que é meu. E se ouso tirar alguma dúvida, ela me manda calar a boca porque está passando uma cena importante na porcaria da novela; parece que o filho de alguém descobriu que biologicamente é filho de outra pessoa. Ó, céus.

Tudo bem, confesso não ter apagado uma conversa remotamente a respeito disso. Lá pelo terceiro ou quarto dia, não sei, insinuei cheio de impaciência que tomasse o caminho de casa. Ela deixou escapar que meio que saiu de lá fugida, num surto de independência contra seu pai. Aí quem surtou e teve uma crise de histerismo fui eu. Como ela toma uma atitude dessas? O que ela ia fazer agora? Para onde iria? Com que dinheiro? Essas coisas. Juliete me mandou respirar dentro do saquinho pardo de farmácia em que ela trouxe o contraceptivo do mês, falou possuir uma boa grana que o seguro de morte da mãe dela depositava todo dia primeiro até os vinte e cinco anos, e fora ainda uma parte da loja da família. Não ia morrer de fome ou congelada numa calçada, toda coberta de jornais. Só precisava de um tempo, já estava até tentando descolar um apê pra alugar. Calma, Santiago.

E mais. Chorando, disse que largou tudo por minha causa, isso mesmo, ela disse “não tenho mais ninguém com quem contar, você é tudo que eu tenho”, com mais ou menos essa construção frásica. Largou o namorado de anos, o pai não viu a ruptura com bons olhos, a mãe morta, o irmão drogado, as amigas superficiais, o resto da família todos uns idiotas hipócritas e ela está sozinha nesta porra de vida. E eu, que achava já ter entrado em pânico, quase tive uma ausência cerebral nessa parte.

Mas a aninhei contra meu peito apertado, devo ter dito que tudo ficaria bem e assenti com um silêncio aterrorizado, o que eu podia fazer? Mas uma coisa eu sabia. Se eu sou tudo o que ela tem, ela está seriamente fodida, muito mais do que pode imaginar.

*
Dez dias, cara. Dez dias dormindo com a mesma garota é um recorde pessoal (u-hu). Em toda minha biografia nunca pensei que o velho Santiago fosse capaz de uma proeza assim. Eu estou crescendo, tomando corpo, posso ouvir o som de cada célula do meu corpo amadurecendo com muita lentidão. Estou me tornando um homem, como diz minha mãe. Talvez.

Dez dias, sabe? Dez dias de sexo e brigas, e aí mais sexo e mais brigas. Brigamos porque dei a entender, segundo ela, que não estávamos namorando firme e oficialmente. Brigamos por que meu apê não fornecia creme rinse e eu caí na besteira de dizer que aquela bosta não funcionava, era só leite (foram duas horas discutindo os avanços da indústria cosmética). Brigamos por causa da vizinha da frente, Juliete quis saber se eu já tive algum lance com ela e eu tive de jurar entre cem e duzentas vezes que não. Brigamos pelo controle-remoto. Brigamos porque fui fumar na janela, muito puto por ter perdido uma ereção mesmo cheio de vontade, e Juliete vem me dizer que lá num livro de psicologia isso era uma coisa boa, significava que eu gostava dela realmente – mandei que fosse à merda. Brigamos porque falei uma coisa docemente e tentando soar romântico, e ela levantou a hipótese de que eu uso o mesmo artifício com todas. Brigamos por causa de cigarros, de pés descalços, de vinhos servidos sem requinte, alho demais na comida, porque ela não era uma boneca inflável, porque não ligo para minha mãe, porque não faço a porcaria de uma faculdade, porque não esperei ela dormir antes de me virar para o outro lado.

Vou te dizer, Juliete não é bolinho, que garota mais dificultosa, ô personalidade, vai ter temperamento assim na China ou no Canadá, mas não nos dois trópicos ao mesmo tempo, em tão curto espaço de minutos. Numa noite ela estava oscilando tanto entre humores que iam do picante ao adocicado que sua bipolaridade foi o mais próximo que já cheguei de um ménage à trois.

Mas, sei lá. Se eu não brigasse com ela todos os dias eu ficaria em casa sozinho, lutando contra mim mesmo, de toda forma. É bom ter com quem bater-boca. Você se sente quentinho por dentro, parece até que as coisas importam.

*
Estou num botequim atravessando a rua, bem em frente de casa, entre um estacionamento e um lugar onde forram sofás. Faz um frio obsceno e estou sem uma jaqueta adequada, o que me obriga a pedir doses de Domecq a sete dinheiros quando eu poderia, se não estivesse apavorado, consumir das minhas próprias doses caseiras de graça, das minhas velhas garrafas quadradas e melecadas. Eu já disse que está frio? Pois é, às vezes chega a ser ridículo o quanto pode esta cidade ficar gelada e úmida.

Dobrando a esquina vem aquela menina com uma blusa de lã horrorosa (em algum lugar uma criança não está conseguindo achar o Wally no cenário, pois ficou descaracterizado após roubarem seu suéter) e aquele cão fedido se arrastando numa coleira. Ela espera pacientemente ao passo que o bicho fareja canteiros e saiotes das portas residenciais que dão para a calçada. Ela tem um ar catastrófico, sensual e infeliz. Anda cabisbaixa e parece não saber direito onde pisar, onde olhar, o que dizer, que roupa vestir. Dá pra ver de longe que ela se acha feia, gorda e inadequada para um comercial de cerveja. Fico a observando enquanto seu melhor amigo derrama litros de mijo sobre um amontoado de flores azuis. Ela me vê, me acena com o queixo e sorri polidamente. Eu bato continência e dou outra bicada no meu copo. Tábata entra no prédio e eu penso em seguir o exemplo, só que não estou muito a fim.

Você também não se pergunta, às vezes, se tem coragem de viver realmente tudo isso que você sonha?