– Que livro é esse aí em cima? – Rafaela me pergunta.
– Você curte livros?
– Alguns – responde.
– Conhece Albert Camus?
– Nunca ouvi falar.
Reporto a ela que O Estrangeiro é sobre um rapaz que atira num árabe meio sem querer, porque se atrapalhou com a luz do sol. Ela não entende bulhufas e eu me frustro ao explicar, pois igualmente não peguei muito bem a história, de modo que a gente deixa pra lá. Não quero falar sobre isso, com Rafaela e com ninguém. Estou num clima de bem-estar romântico e pretendo espremê-lo até o limite, como uma esponja de cozinha.
O cenário da noite passada me distrai a manhã toda e eu fico repassando tudo na minha cabeça, como se fossem falas de uma peça teatral que repetirá a sessão esta noite, mesmo sabendo que ao chegar no meu apartamento, Juliete já terá ido embora. (Eu não quis acordá-la tão cedo, de modo que deixei uma chave da porta no bidê, por sobre um bilhete seco e desajeitado que terminava dizendo que nos veríamos por aí, já que ela precisaria devolver minha cópia reserva de toda forma.)
Geralmente adoro quando algum freguês idiota pede pra falar com o gerente, me sinto um pequeno poderoso, mas hoje estou mais a fim é de ficar no meu canto, entretido com meus pensamentos.
– Eu pedi um chá de camomila e veio com gosto de pé – reclama uma moça de cabelos crespos e ruivos, meia-idade, olhos afundados como quem não dorme bem há oito anos.
– De pé?
– É, de pé.
– Vou pedir para que tragam outro...
– Não, eu já pedi. Veio com gosto de pé também.
– O que você quer, então?
– Vocês podiam lavar melhor essas xícaras.
Viu só todo o tipo de troço que eu tenho de aguentar sorrindo? Mas hoje, especialmente hoje, estou contente demais para me aborrecer. Retorno ao meu posto e jogo os pés por cima da mesa, observando a pequena claraboia gradeada que dá para rua. É o primeiro dia realmente frio do ano. Enquanto penso em Juliete, consigo controlar minha vontade do cigarro inaugural deste que é um dia belo demais para fumar.
Combinei assim, comigo mesmo: se eu acender o primeiro do dia cada hora mais tarde, em três semanas mais ou menos conseguirei parar completamente. Mas a grande questão, a mais urgente e significativa, o meu “ser ou não ser” tabagista, é: por que parar? E não de que jeito fazê-lo. No duro, não é como se eu tivesse alguém especial me vigiando porque está pensando em passar o resto da vida comigo e é importante que eu dure um bom tempo sem enfisemas, disfunções eréteis, gangrenas e outras moléstias fotografadas para o verso dos meus maços de seis dinheiros.
Enquanto enfio mais um daqueles milagrosos chicletes de merda na minha boca, relaxo um pouco mais na minha cadeira de gerente e penso em quem seria essa pessoa. Onde vou conhecê-la? Será que o Joel vai me apresentar alguém? Uma garota dos tempos de escola em Pelotas? A jornalista que irá me entrevistar quando eu finalmente publicar um livro? Será que eu já sei seu nome? Será que até já tive a oportunidade de me doar e acabei ferrando com tudo? É possível, as coisas não deram muito certo com Sarah, muito porque durante todo o nosso relacionamento de onze dias eu fui, você sabe, Eu Mesmo, e isso seria ótimo – se eu fosse outra pessoa, um alguém legal, paciente e carinhoso; e não essa criatura distante, inquieta, descompromissada e com esse dom natural de sempre cagar com tudo.
Sei que Juliete não é, isso eu sei. Mas de qualquer jeito não deixo de pensar em como seria, e é desse jeito que eu preencho meu inútil dia de trabalho. Eu a pediria em namoro ou nos veríamos obrigados a aceitar a condição porque ela ficou acidentalmente grávida? E qual seria o nome dessa criança? E o que pai dela acharia de tudo isso? Talvez ele me oferecesse uma posição confortável em uma de suas empresas, ou um apartamento maior para morarmos, ou uma viagem à Grécia, eu sempre quis conhecer a Grécia. E é isso, o dia todo, e quando vejo estou mexendo com situações maritais e barrigões absurdos e insônias e a conta das aulinhas de natação chegando mensalmente. Eu deveria estar ainda no estágio das mãos dadas no parque, na pipoca dos cinemas e dormindo de conchinha nas noites de agosto. Mas não pareço muito capaz de frear meus devaneios em se tratando de Juliete.
Pelas cinco da tarde juntei minha mochila, olhei pra todo mundo e larguei um “até amanhã”.
***
Nem a vi entrar, quando dei por mim, seus cabelos longos e negros como treva estavam fazendo cócegas na minha face sonolenta. Descolo as pálpebras lentamente e ela está ajoelhada ao meu lado, me olhando expressivamente, acentuando seu apego.– Isso são horas para estar dormindo? – me questiona, desabotoando o sutiã às costas, na direção do banheiro, decerto indo para uma ducha no meu chuveiro.
– E que horas são essas? – respondo com outra pergunta. Minha cara está pesada e tenho os lábios grudentos. Acho que estava na terceira camada de sono.
– São oito da noite – Juliete replica. – Levanta, vamos comer alguma coisa.
– Passei a noite em branco, se você não sabe – digo.
– É, sei como é. Esqueceu que eu estava junto? Você precisa largar de ser preguiçoso, Santiago. Fazer coisas de gente. Sair com seus amigos ou, sei lá, fazer andar de bicicleta – grita Juliete, audivelmente fazendo xixi, de porta arregaçada.
Então é nisso em que se transformam as noites mágicas de paixão adolescente e sexo brutal, depois de um tempo? Ficar ouvindo reclamações, barulho de máquina de lavar e som de mijo? Não, muito obrigado. Em termos reais, a verdade é que a ideia de um relacionamento fixo e duradouro me causa alguma repulsa. Por que alguém ia querer uma coisa dessas?
E outra, vai ser assim a partir de agora? Eu não terei a cópia da minha chave de volta? Juliete vai ficar entrando e saindo do meu apê o tempo todo? Se for assim, daqui a pouco nossos beijos aquosos e linguarudos subindo as escadas vão se transformar em selinhos insossos de “oi, como foi seu dia?” Não posso deixar isso acontecer, ela precisa ir embora e deixar a cópia em cima da mesa. Como vou executar esse plano sem magoá-la?
Me infiltro embaixo da água corrente. Gosto de ver Juliete nua. Ela percebe minha ereção e minha feição gananciosa, e, de forma meio improvisada e estabanada, acaba me dando no cubículo que é meu box. Esse tipo de coisa que ela faz me pega.
Por fim, me dou conta de que estou numa fase de negação, quando pela primeira vez tudo parece que pode funcionar entre nós. Eu me sinto como aqueles caras que morrem soterrados de frio após planejarem anos escalar o Everest, ou aqueles fãs que esperam décadas sua banda predileta desembarcar na cidade e aí não conseguem ingresso. Não estou preocupado com a regularidade alarmante de sua presença. Mas com as noites em que ela resolver não vir. É por isso que espero devolução da minha chave, do controle sobre mim mesmo. Não quero gastar minhas horas e créditos telefônicos querendo saber se hoje ela vem ou não.
***
Enquanto tenta me convencer de que preciso de um fogão que não vaze gás, vamos apagando as luzes e catando nossas chaves, telefones, carteiras, bolsas e casacos. Juliete decidiu ir até a esquina comer sanduíches de peru desfiado com molho rosé num piano bar aonde falei que a levaria lá uma noite dessas, pois já me sinto em casa e sei o nome do dono.Quando estamos cerrando a fechadura, a porta do vizinho frontal se abre de repente e revela um rosto sôfrego e conhecido. É aquela garota, a Tábata, com o punho fechado, os pés emparelhados e estacados no chão e um esgar fantasmagórico. Acho que ela estava à espreita de que algum ruído no corredor entregasse que eu estava de saída para então falar comigo novamente. Vai ver ela esqueceu algo no meu apartamento, um brinco ou coisa assim, embora não me lembre de brincos naquela noite. Muda, ela entra por onde saiu e fecha a porta atrás de si, após analisar Juliete por uns dois segundos.
– Garota estranha.
– Nem me fale – concordo com ela.