– Para o quê?
– Controlar o meu desejo.
– Não conte comigo – e dou um risinho cretino. – Mas por que você ia querer fazer uma coisa dessas?
– Porque eu sei que mais tarde você vai dar um jeito de me mandar embora e vou descer as escadas me sentindo uma coisa-nenhuma.
– E quem disse que vou te mandar embora? Eu nunca te mandei embora. Quando eu te mandei embora?
– Calma – me pede. – Não diretamente, mas você sempre arruma um jeito de me deixar desconfortável e me sentindo intrusa. Pareço meio tantã das ideias, mas pego bem os recados do ar.
– Você está é estragando o clima com esse papo, Baby Julie... – aviso.
– Bola fora minha. Desculpe. Vem... – ela me puxa pelos cachos caindo sobre a nuca, e eu deslizo por suas pernas arregaçadas e suspensas no ar, me afundando na hospitalidade macia da sua pelve. Ela junta seus dois pezinhos na minha lombar, cadeando meu tronco num círculo perfeito.
Desta vez não é um sonho. Embora se manifeste igual a um, eu sei que essa sensação de delírio e desatino é efeito da dopamina ensopando todos os cantos do meu cérebro. Enquanto meu corpo se diverte eu sei que a minha cabeça está em apuros.
Estamos numa pequena capital latino-americana, certo? Mas dá muito bem pra esquecer esse detalhe geográfico. Parece que fomos recortados do quarto de um hotelzinho barato na zona central da Paris dos anos 1930. Estamos juntos não apenas por um encaixe de mãos, peles, bocas e genitálias, mas por uma fantasia – uma utopia, talvez? – de que não pertencemos ao mesmo nível planetário que os outros, como se não fôssemos os mesmos mortais, compartilhando o mesmo tempo. Não sei se o sexo por si só consegue dar um nó desses. Pode ser outra coisa. Estamos ligados de um jeito que eu ainda não entendo. E eu odeio quando sou incapaz de compreender alguma coisa.
Definitivamente, agora sim, não estou viajando como aconteceu em algumas noites em que adormeci pensando nela, após beber conhaque demais sentado na minha poltrona. É fato. Sei porque, há pouco, estava mordiscando uma gordurinha flácida e saliente na parte interna da sua coxa, como se fosse alcaçuz. E as garotas que aparecem em sonhos não têm esse tipo de coisa. Nem esse cheiro e nem esse gosto e nem essas manchas arroxeadas na lateral das nádegas.
Então eu paro o beijo no meio e tiro meu corpo de cima, porém por uma boa causa. Desligo a tevê e boto um disco de jazz pra tocar. A função aleatória escolhe “Embraceable You” para começo, como se adivinhasse minha vontade. Alguns segundos permaneço de pé, franzindo a testa de olhos fechados, envergando o pescoço e com o indicador em riste, fingindo conduzir com maestria o saxofone do lendário Bird. Da cama, Juliete gargalha ridicularizando o que ela define como “música de velho”. A estúpida entrega que nunca alugou qualquer coisa do Woody Allen.
Volto apressado para as cobertas e retomo o que eu estava fazendo, e a comunicação verbal é novamente interrompida. Manuseio os gambitos de Juliete como bem entendo, os levanto, os fecho, abaixo, abro e chupo meu lugar favorito em todo o mundo, com a mesma estima e dedicação que Charlie Parker tira o som daquele instrumento. Ela estende o braço e agarra forte meus cabelos ensebados pela raiz, suas unhas esfolam meu couro e não digo nada, resisto concentrado, mas ela segue os puxando, oscilando força e cuidado, sofrendo uma série de solavancos pélvicos à medida que suas reações de prazer, desconforto, transe e agonia competem entre si.
– Você gosta? – me pergunta, assim que passo minha atenção para o próximo brinquedinho.
– Do quê?
– De fazer isso? Quero dizer, você não sente, sei lá, repulsa?
– Não há nada no seu corpo que eu não ache bom.
É isso, isso aí, exatamente aí! É disso que eu estou falando. Você pode chamar como estiver a fim, de química, epiderme, fusão de almas, paixão, amor, blá-blá-blá, ou qualquer outro termo que soe super-sexy saindo da boca de um Patrick Swayze e super-brega se pronunciado por um cidadão comum tal eu sou. Mas é aí mesmo, é isso que estamos procurando quando vamos pulando de garota em garota, transformando as relações numa selva.
Estamos todos atrás do verdadeiro tesão (o tamanho do “T” sim é que é documento), de alguém de quem aceitamos de bom grado todos os seus fluidos. Certa altura, ela sussurra “Santiago, faz assim” ou “Santiago, eu quero assado” e eu a obedeço, claro, e essa é a diferença – dela, para as outras com as quais já me deitei com as roupas no assoalho. A maioria dos homens quer exclusividade, uma vagina que eles possam chamar de minha, mas isso de possuir é subjetivo e pouco importa. O que importa é ganhar aquela olhadinha livre-arbitrária de “Veja, eu não estou aqui apenas para me masturbar com a sua ajuda, eu realmente quero dar pra você. PRA VOCÊ!”. Bem, aí é o auge, depois disso você não vai mais querer saber de outra coisa. O resto não passa de acrobacias, ereções e lubrificações. Ou, como diz meu amigo Marcus, “sexo de farmácia”. Não havia compreendido bem o termo, até agora.
Olha, ela poderia estar em qualquer lugar do mundo – é sério, ela tem recursos pra isso – e optou por estar aqui nesse continente, em Porto Alegre, perto do centro, nesse quarto apertado. E não é impossível imaginar que ela tenha uma listinha na bolsa nomeando onze ou doze sujeitos que poderiam fazer meu papel numa boa. Mas está comigo. Sim, isso aí mesmo, comigo. COMIGO! Eu tenho sorte, não tenho? É claro que tem Santiago, até o dia em que você vai cair em si e perceber que essa mulher arruinou sua boa vontade para qualquer outra fêmea cansando de te esperar no futuro.
Estamos de cara para a lua. Eu fiz tanta força que cruzamos toda a extensão do colchão e fomos parar na cabeceira, próximo à janela. Ela debruçou os cotovelos, inclinou o tórax e eu não a soltei nenhum milímetro, continuei a pegando por trás, abraçando suas costas, ora sentindo a nuca com cheiro de suor, ora admirando seu cóccix. Mexi no interruptor e ficamos no escuro, assim ninguém poderia nos ver lá de fora, nem quem passasse a pé ou de ônibus, e nem o senhorzinho jantando solitário no prédio da frente, dois andares acima.
Enquanto escutamos o som degradê do jazz ejetando do aparelho de CD, nossos corpos produzem estampidos ao esbarrar um no outro e a gente alterna feições de dor, de medo, de êxtase, com sorrisos maliciosos e deboches direcionados para a vida imbecil que todos estavam levando, no mesmo momento em que fazemos essas safadezas apaixonadas, com a claridade nebulosa e amarelenta do luar em nossos rostos. Duvido que, algum dia, eu participe de uma cena mais romântica do que essa. Ponto para o cinema, que nos deu referências a respeito de que tipo de careta devemos fazer, e que som fica bem emitir, e como nos comportar numa situação única como essa. Obrigado, Patrick Swayze, sério mesmo cara, de todo o meu coração.
Caímos no mesmo lado da cama, Juliete por cima. Suarentos, avermelhados, ofegantes e levemente ruborizados com as coisas que acabamos de praticar, mas ainda assim felizes e satisfeitos com nosso desempenho entrosado (tanto que não seria surpresa a qualquer momento receber um telefonema de algum secretário de Eros, nos cumprimentando). Tomamos o cuidado de não manchar o lençol, e na falta de um pedaço de papel higiênico, eu ofereço minha camiseta quase limpa. Conversamos um pouco, até ficarmos letárgicos e sonolentos e entregues.
Juliete não faz qualquer pergunta sobre minha mudez, mas mesmo assim percebo um ruído de incômodo. Antes que a garota se queixe, clareio que estou quieto não por a querer longe, mas porque, bem, sou um garoto que acabou de trepar. Ela acha graça e diz tudo bem, entende, vai fechar a matraca. Quase brigamos por conta disso, não quis dizer para que calasse a boca e tudo. É só que, ela vê meu silêncio como uma afronta ou um descaso, quando para mim é o sinal mais afiado de cumplicidade e compreensão e intimidade entre duas pessoas. Ao contrário do que diz a sabedoria popular a respeito, conversar depois do sexo não é sintonia porra nenhuma, só demonstra o quão culpados ficamos após realizar todas aquelas manobras animalescas – toda palavra pós-coito é, na verdade, uma desconversa. Vão querer o quê, que eu tome um banho também? Eu não me sinto mal por gostar da coisa.
Fora esse pequeno desentendimento, conseguimos adormecer amigavelmente.
***
Acordo num estremecimento, meio dormente, gelado e kafkaniano. Talvez seja uma crise de hipoglicemia ou troço assim. Vou até o banheiro e só me dou conta de que a noite passada foi concreta quando sinto o cheiro dela no meu pau. Lavo o rosto e saio do banheiro esfregando os olhos e tateando a parede, quando dou de cara com o dia aclarando, recheando o quarto com uma luminosidade turva e rósea. Me aproximo e a garota dorme de boca entreaberta, parecendo um pequeno ratinho envenenado, com alguns dentinhos aparecendo. A cena me tira um sorriso de ternura. Falho ao não conseguir frear essa minha felicidade impostora. Meus dedos tiritam, os joelhos amolecem e o oxigênio me faz falta. Porcaria, eu preciso de um chocolate.