Bem abaixo, me sentei no meio-fio e ali dei um tempo, assobiando.
– Não era pra você ter me visto... – tentou se explicar já em solo, reajustando a blusa, a franja, o sapato de salto não muito agudo, mas nem por isso apropriado para esse tipo de escalada.
– Você tem feito muito disso? – pergunto com a sisudez de um investigador do FBI.
– Não muito – Juliete dá de ombros, sem nenhum traço aparente de vergonha-na-cara. Faço um gesto com as mãos de o-que-fazer-com-uma-criatura-dessas.
– Assustador – concluo então. – Você quer entrar?
– Não. Ainda estou indignada contigo.
– Que bom. Você fica uma graça quando está braba comigo. Sabe, você fica berrando todos aqueles xingamentos e eu só consigo pensar em dar uma mordida no seu queixo furioso.
– Cala a boca.
– Tudo bem. Se você quiser a gente pode fazer um telefone sem fio, da árvore até meu apartamento. Acho que tenho umas latinhas vazias em casa. Vai ser divertido.
– Idiota – diz jogando as sobrancelhas pro ar e tentando desesperadamente não rir. – O que você tem aí? – ela faz um gesto farejador com o nariz, se metendo na minha sacola de papel pardo que eu trago do mercadinho dobrando a rua.
– Hum, deixa eu ver – enfiei a cara no pacote. – Seis cervejas, dois baguetes e umas tiras de salmão defumado.
– Hum. Parece bom – comenta. – Esperando alguém?
– Sabe como é. A gente nunca sabe quando uma visita vai estar nos esperando no topo de uma árvore...
Ela soca meu úmero, toda encabulada. Até dói um pouco, não muito.
– O canal MGM ficou de homenagear Cameron Crowe a partir das dezenove horas – falo sério, pondo Juliete a par das miudezas maravilhosas do cotidiano. – Temos Vanilla Sky, aí Quase Famosos, depois Jerry Maguire e aí Tudo Acontece em Elizabethtown. É, eu acho que essa a ordem. Todos, um atrás do outro.
– Não vi nenhum desses.
– Sério? Em que galáxia você vive?
– Num planeta muito distante, onde os homens entendem nossas indiretas – diz num tom performático. – Mas é claro que eu vi! Sou fã do Tom Cruise, ele fez alguns desses, não foi? Disse que não assisti só pra você insistir que eu deveria vê-los e me chamar lá pra cima. Seu panaca.
– Ah, bom. Eu não tinha entendido mesmo.
O panaca a chama lá pra cima e dessa vez ela não pensa muito antes de se decidir.
***
A maratona de cinema em casa vai longe, mas sem nós. Já na sessão inicial, quando o Mr. Cruise grita ELA ROUBOU A MINHA VIDA!, a garota está sem a parte superior da roupa, e por alguma razão impensável seus peitos foram parar na minha boca. Nenhum filme, do meu preferido Cameron Crowe ou não, jamais exibirá cena tão bonita quanto o movimento tímido, meigo e melindroso de Juliete tirando a blusa pra mim. Vocês até podem tentar, prezados diretores, todos vocês, mas se depender de mim já posso sentir o cheiro do fracasso de bilheterias.Mas não aconteceu tão ligeiro. Antes, a gente matou a fome com os sandubas de salmão com rúcula e uma maionese de leite que recentemente aprendi a fazer com uma das cozinheiras do café. E aí conversamos um pouco. Eu falei. Ela falou. Nenhum assunto que pudesse nos colocar em rota de colisão foi para a ata. Sem incitações angustiantes de memória. Juliete contou da França, de Roma, de um húngaro que tentou golpeá-la. Falou da vida nova de solteira, da faculdade trancada por tempo indeterminado, que está procurando um emprego e um outro local para morar – pequeno e agradável, de preferência uma cobertura bem distante da civilização. Essas coisas.
Ah, importante. Também me falou que há dois dias foi ver o irmão no apê que o pai deles alugou no centro de Porto Alegre, para o barbado viver com alguma decência. Disse que seu mano está perdendo dentes, raciocínio e tudo, por causa da metanfetamina. Acabou chorando um pouco na parte do relato em que ele arrancou de sua bolsa uma nota de cem. Se encostou no meu peito. Abracei Juliete, com delicadeza e precisão. Ela fungou com eloquência. Eu beijei o topo da sua cabeça. Ela foi acalentando a respiração. E a gente acabou, você sabe, se readaptando àquele contato íntimo que tanto nos fez falta. Comovido, fui me desculpar pelo lance do livro, por tratá-la mal, por tudo, enfim, mas ela não deixou, não quis falar sobre isso. Em suas bochechas, lambi algumas de suas lágrimas.
– Só quero que você faça amor comigo – disse.
Afastei sua cabeça, segurando a garota pelas têmporas e olhei bem na cara dela, me certificando se ela só podia estar maluca. Ela contrapôs minha cara apavorada com aquela feição manhosa e ardil.
– Eu quero! Você me deve uma – repetiu.
– Não sou um pedaço de carne, Juliete. Eu tenho sentimentos.
Mesmo com o rosto todo salgado e lacrimoso, ela deixa escapar o riso, e logo em seguida, eu também. “Eu tenho sentimentos”, essa foi boa, hein? Tudo bem então, aproximei minha boca com a intenção de tascar de uma vez aquele beijo tradicional de abertura dos trabalhos, só que ela engatou numa gargalhada que parecia que tinha um apito preso na garganta, o que foi meio o anticlímax. Tentei outras vezes, por cima e por baixo, sem sucesso, ela estava muito abobada e risonha. E então desisti, acendendo um dos meus últimos Lucky Strike perto da janela.
– Senti muita saudade dessas suas risadas gostosas – falei.
Juliete me mostrou a ponta da língua rapidamente e submergiu no meu cobertor. Virei a cara e dei umas baforadas pra rua, sob uma imensa Porto Alegre escura e encoberta por nuvens, luzes e cores de outono. Uma brisa vem chegando do rio, umedecendo as calçadas e a ramaria seca e amarelada daquele flamboaiã vermelho. Cavei um suspiro vagaroso. A noite me respondeu com uma aragem fresca na face, me roubando um raro momento sorridente, com cada músculo do meu rosto.
Aquela velha história, a mesma garota na minha cama, no meio das minhas coisas. Como uma reprise do mesmo sorriso malicioso, o mesmo ar arruinado, o mesmo corpo surreal. Às vezes, Baby Julie rebaixa a bainha do cobertor e esconde meia feição, só deixando os olhos de fora, me provocando, cobrando alguma atitude vil. Fica me encarando, jocosa e debochada, para depois recuar de novo, só de farra. Como uma musa-inspiradora de Charlie Parker, o jeitinho suave e imprevisível de menina falcatrua, a amante pavloviana da minha vida. Esquecer como, esses olhos de deusa-cadela?
Amassei a ponta em fogaréu no esquadro da janela e me juntei a ela, penetrando com voracidade pelo lado inverso da manta de flanela cinza-com-verde, e a garota grita de susto, implorando para não ser castigada com as sabidas cócegas. Nem dei ouvidos. Os pés de bailarina na minha cara. Lindos. Pequenos, porém esguios, macios, dedos longos. Ela intuía que algo pudesse acontecer, pois eles estão bem cuidados, lisos, perfumados e coloridos. Ela sabe que eu os adoro e sempre dou uma passada por ali, entre uma rolada e outra, passeando pela cama ao trocar papeis e posições. Não sei, talvez minha tara seja pela franqueza com que essa parte do corpo feminino expressa a sensualidade. Sem adulterações, fora esmalte e uma correntinha de tornozelo. É impossível fabricar mais do que isso. É como é.
A folia prosseguiu por baixo dos panos, e o fluxo de risadas profusas tateia o limite, a voz dela esganiça, meus dentes serrilham, nossos corpos começam levemente a amornar, não importa que nossos pelos entrem em atrito, o suor expectora lentamente e vai me selando a ela. A vontade de corpo começa a cheirar e mutuamente nos atrair, como a chaminé de uma fábrica de doces abandonada, mas que nós dois podemos jurar ainda sentir jujubas no ar. Eu vou perfurando aquela pequena cabana acolchoada, perseguindo um breve facho de luz, puxando ar. E quando meu rosto se equipara ao dela, nossos olhos se encontram.
Tudo pausa e a gente se põe a ficar sério. Seus olhos examinam os meus, as pupilas inchadas miram em todas as direções oculares, a dois centímetros de separação. Trocamos um breve e intenso beijo, e meu lábio inferior é quase arrancado, por pouco não ficando pendurado entre seus dentes afiados de bicho-do-mato.
– Vamos, anda, me traça! – disse ela, contrariada.
Me traça? De onde ela tirou uma expressão dessas? Recomeçamos a rir feito idiotas.
continua...