Começamos mal. Ela apareceu no Sta. Gemma Café para tratarmos o esquema, sempre com aquela mania metódica de atrasar o fechamento do estabelecimento. Brigamos, porque de início não chegamos a um acordo sobre local, e posteriormente sobre horário de sessão, que tipo de filme ver, se encararíamos a fila dos ingressos juntos ou distantes para não dar bandeira. No fim, assistimos um filme sobre mulheres divorciadas que vão até a Itália para se apaixonar por estrangeiros sedutores e incríveis, ao que deu pra sacar. Ela adorou a experiência, só piscava para irrigar seus canais lacrimais, enquanto eu só olhava para os lados e afundava os ombros no meu assento. Quem deveria estar atordoado pela chance que estávamos dando para sermos pegos na tampinha é ela, e não eu – mas sou assim, acho que se algum analista remover a culpa de dentro de mim, sou capaz até de morrer. Quando consigo relaxar é muito tarde para decifrar como é que a porra do Javier Bardem se enfiou no meio da história.
Créditos na tela, luzes acendem, e somos expurgados do cinema pela porta oficial de saída – ela primeiro, eu quatro minutos após, disfarçadamente. Cruzamos a rua e nos encontramos do outro lado do parque, e lá ficamos um tempo a alimentar patos e conversar sobre o filme, coisa que no meu modo de ver as coisas, aí já é demais. Levar a garota que você anda comendo regularmente para uma sessão água-com-açúcar não desanuvia e nem engrandece o elo, é que eu descubro quando ela abre a boca.
– O que você vai fazer nesse verão?
– Passar calor – respondo. – E você? Pelo visto tem algum plano...
– Todo o verão ficamos uns dez dias em Portugal.
– Desde quando? – quero saber. Não quero que ela vá a lugar nenhum. Só de pensar nisso meu coração começa a se comportar como um leão selvagem enjaulado num trailer de circo. No duro, achei que ela estava começando a me pertencer. Eu sou um inocente de segunda mão.
– Desde sempre, ora. Você me conheceu este ano, apenas. Não sabe nada da minha vida – ela é rude ao dizer. – Meus avós paternos moram lá, todo ano passamos o Natal com eles. É uma tradição.
Ela vai passar as festas de fim de ano lá. Não é grande coisa. Fico mais calmo.
– Estava pensando em ficar por lá o resto do verão – Juliete anuncia, e eu volto a ficar agitado. – Tem alguns lugares que eu quero conhecer. Madrid, Praga, Berlim, Paris... Sei que é um roteiro meio batido, mas ainda tem várias coisas que eu quero fazer, entende?
Entendo. Coisas que custam dinheiro. Coisas que não me incluem, a não ser que eu comece a revirar as lixeiras da cidade atrás de latinhas de refrigerante. Porcaria.
– Legal. Você e o Maurício serão muito felizes lá na Europa, aposto que voltarão com os espíritos renovados e com um relacionamento novo em folha – digo babando ironia e rancor.
– Na verdade quero usar essa viagem para tirar algumas coisas da minha cabeça, pensar no que vou fazer. Não estou conseguindo me concentrar aqui.
Ah, sim. Como se a mil quilômetros de distância tudo fosse se resolver no abrir de uma caixinha de música. Os problemas também andam de avião, eu penso. Mas estou fazendo mea culpa, exercitando meu lado socrático, sem advogar muito a meu favor. Só que estou borbulhando de raiva, de incompreensão, uma vontade insana de pegar essa maluca pelas axilas, rodopiar umas três vezes e atirá-la no lago junto com os malditos patos. Talvez o banho de água fria traga a ela uma ideia de como estou me sentindo agora. E o tal do estou-pensando-em-terminar-com-o-Maurício, o que aconteceu? Era uma boa ideia. E mais, como assim “tirar algumas coisas da minha cabeça”? Que coisas? Se você está se referindo a mim, desculpe gatinha, mas não vai ser assim tão fácil. Você terá de ir muito mais longe do que pensa, se quiser me esquecer. E não estou falando de Paris ou da Austrália ou de Butão, estou falando sobre aquele tempo-lugar inatingível em que você ainda nem me conhecia, Baby Julie. Se o seu objetivo é, você sabe, tirar coisas da sua cabeça, bem, você deveria ter pensado nisso antes, garota. Boa viagem e foda-se.
– Aonde você vai, Santi?
– Para minha casa. Tenho montes de coisas a fazer e tal.
– Como o quê?
– Ficar longe de você é minha tarefa mais imediata.
– Deixa de ser infantil!
– Ok. Te ligo quando eu amadurecer.
Terminamos mal.
***
Levantei, fui pra ducha, vesti uma camisa branca e aquela velha calça. Desci as escadas cantando uma do Sinatra e saí a caminhar por aí. Estou num bar. Sozinho, de frente para um copo baixo com Domecq e guaraná misturados, e pensando em coisas que eu não deveria estar pensando. Ainda é dia, cedo demais para me entorpecer, mas a vida é isso.Um pouco à esquerda, tem uma garota, e a gente está meio que se deixando consumir por um jogo de olhares. Entrei na fila meio segundo antes dela, mas a deixei passar porque gostei de suas sobrancelhas. A garota é uma espécie de Joan Baez com sardas nas bochechas, óculos grandes, mais quadril e menos altura. Sempre frequento esse bar e às vezes dou conta de avisar os novatos que a administração reparte os clientes em “pagantes com dinheiro” e “pagantes com cartão”. Tratei de avisá-la e ela disse “obrigada, mas acho que estou na fila certa”. Como assim, “acha”? É dinheiro ou cartão, afinal? Não há muito o que achar sobre isso. Uns três passos à frente, ela se vira e pergunta se não me conhece de algum lugar – essa é velha, mas dá papo. Faço um biquinho de quem pensa um pouco e digo a ela que escrevi a letra de uma música que já tocou numa rádio de Pelotas. Ela acha graça da minha alegação nonsense. Então foi isso, estabelecemos uma conexão. Agora é ver o que vamos fazer com ela.
Mas aí, ainda na fila, meio atrasado, chega um rapazinho de mochila e cabelo encaracolado. Ele veio almoçar com ela, mas segundo ouvi em seu falatório, ficou preso no elevador da firma. Óbvio que uma dessas não come sozinha em restaurantes, onde eu estava com a cabeça? Cada um foi para o seu lado, os dois sentaram um de frente para o outro, eu escolhi um lugar onde corresse ar e pudesse ver os gols de ontem. E, claro, com ela no meu campo de visão. Inevitavelmente trocamos alguns sorrisos, patati, patatá. Eu estava com o guardanapo na boca quando alguém familiar pega no meu ombro e me estende um pedaço de papel.
– Minha amiga pediu para te entregar.
Era um nome, um telefone, uma frase curta e um pequeno desenho tosco, mas fofo, de uma carinha sorrindo: me liga? Segurei o troço numa postura desconfiada e analisei a cara fechada do pequeno mensageiro.
– Bom, era isso. Até mais – ele diz, se despedindo todo sisudo e sem jeito com as mãos.
– Espera.
Ele para e se volta de novo para mim, com um misto quente de pavor e impaciência no rosto.
– Por que você está fazendo isso? – pergunto.
– Já disse, minha amiga, aquela garota ali de verde, pediu que eu o fizesse.
– E então você fez, mesmo a contragosto.
– Como assim?
– Você gosta dela.
Ele não responde, mas seu rubor o entrega. É a primeira vez que alguém o confronta com a verdade, com a miséria de sua vida de macaquinho de estimação daquela bela garota.
– Como você sabe?
– Bom, pela sua camiseta – era uma camiseta larga e alaranjada, com uns dizeres surfistas – e seus tênis sujos, você obviamente não é gay. E quando chegou a beijou no rosto, apenas um beijo, não dois, um beijo lábios-bochecha-estalado e isso demonstra chamego. E vocês entraram em filas diferentes, logo você não pagou a conta dela, e isso demonstra que vocês são puramente amigos. Mas eu vi a forma como você a olha. Fora que você está fazendo um favor ridículo à garota, dizimando sua masculinidade, logo ela não te vê como homem. Na boa, você se atravessaria na frente de uma bala perdida na direção dela.
– Ah, isso são só suposições. Você vai ligar pra ela ou não?
– Engano seu, são probabilidades. E agora você está interessado em saber o que vou fazer com os números que ganhei, e seus trejeitos ranzinzas dão sinais de que você não acha isso uma boa ideia. Por que será, hein? Peguei você, garotão.
– E se eu gostar? Que diferença faz? Foi pra você que ela mandou o telefone de toda maneira. Faça bom proveito e me deixe em paz.
– Espera. Eu não vou ligar pra ela – digo.
– Ah, não, cara, ela vai ficar arrasada – o rapaz retorna apaziguador. – Ela teve um último ano muito ruim. Certo, ela faz essas coisas de pagar a própria conta e mandar recados ousados a desconhecidos, mas no fim ela sempre se ferra. Na boa, telefona pra ela. Ela vai ficar feliz, e você também vai, pode apostar. É uma ótima garota.
– Ei, você tem certeza que sabe qual a funcionalidade desse negocinho aí preso na sua braguilha? Deixa eu explicar como se usa...
– Chega! – ele me interrompe. – Liga pra ela, porra. Eu sou apaixonado pela garota há três anos e meio e até agora não fiz nada, ela nem desconfia, e deve até pensar que tenho algum problema, sei lá, tipo fungos na virilha. É óbvio que não vai acontecer nada. Então por que não ajudar outro a assumir a função, já que eu não posso?
– Quem sabe se você concentrasse seu talento para arranjar seus próprios encontros amorosos...
– Cara, essa conversa está me deixando desconfortável. Eu vou embora.
– Ah, para de choradeira! Quer chorar, vai chorar com a mamãe. Espera, garoto – seguro seu braço. – Presta atenção no que vamos fazer. Três semanas está bom pra você? Você tem três semanas para declarar que sua braguilha palpita quando a vê, e que talvez isso seja amor. Vou ficar no seu pescoço, bonitão. Se nesse tempo você der um jeito nisso, bom, talvez aí eu saia com ela.
– Você vai telefonar três semanas depois?! E dizer o quê?
– Eu me viro, invento uma história, sei lá. Isso é problema meu. Atenha-se a chamar a gatinha pra sair e tirar essas pedras dos seus ombros. Você está sobrecarregado, está até andando meio corcunda. E eu espero que ela me atenda e me diga “ah, sabe o que é, não vai dar, eu estou saindo com outra pessoa agora”. E essa pessoa, sabe quem será? Você. É, você mesmo, já pensou? Será o melhor fora da minha vida, porque aí eu saberei que ela está contigo, que você não é um covarde bunda-mole como eu estou pensando agora.
– Você pensa isso de mim?
– Bem, você não me provou o contrário em cinco minutos de amizade, então... é, acho que sim.
– Ah, sei não... O que eu vou dizer a ela?
– Ok, agora já está abusando, amigo. Ela não deve ser tão difícil assim, eu só dei preferência na fila e contei uma piadinha boba e ela já deu o telefone. Sei lá, comece com um elogio. Conheço a garota a vinte minutos e já posso dizer duzentas e trinta coisas agradáveis sobre ela, imagina você, que a persegue a três anos e meio.
– Ok, mas...
– Três semanas, meu rapaz. Três semanas. Agora sai daqui e diga a ela que estávamos falando sobre, sei lá eu, qualquer coisa. A escalação ideal do Brasil de Pelotas. Boa sorte.
– Eu queria ter essa sua confiança...
– Dá o fora! – Confiança uma ova.
Sarah. Sarah? Onde ouvi esse nome, de onde conheço essa pequena?