A última vez que a vi foi entrando num táxi no terminal da rodoviária. Através do vidro semiaberto, ela primeiro encostou os lábios delicadamente na mão, e depois vergou a palma na horizontal soprando o beijo na minha direção. Num gesto cênico, eu peguei no ar e o enterrei no meu peito. Acenei um “tchau” com a mão suja de sangue. A hemorragia durou dias. Ninguém ficou de telefonar.
Então Juliete bateu aqui e nós fomos pra cama, onde atravessei seu corpo delgado e frágil, como quem vai de encontro com a morte ao pular de uma ponte com um elástico amarrado no tornozelo. Eu fico lá – tóin, tóin, tóin – suspenso no ar, alternando o êxtase de saltar em queda livre e me sentir voando, com a proximidade das pedras loucas para esfolar a minha cara e inutilizar minha quinta vértebra. É como um bungee jump, se ela me der mais corda, eu vou com tudo contra o chão. E ela sabe disso. Por isso tesoura o meu barato.
Ela ameaça dizer algo, seus lábios chegam a estalar suavemente, porém a garota se freia, examina o lustre e se perde num longo suspiro em espiral. Talvez eu não seja a pessoa recomendada para confessar o que ela está a fim de fazer, porque sou parte interessada, mas Juliete não tem muito com quem conversar ultimamente. E se a garota ousar dizer a alguma de suas amigas insignificantes o plano que está prestes a executar, bom, será repreendida e exposta ao ridículo.
– Estou pensando em romper com o Maurício – diz para o teto, e aí me olha segundos depois, buscando alguma reação.
Eu consigo disfarçar meu entusiasmo, mas minha respiração soa esperançosa e profana ao mesmo tempo. Solto um “pfff...”, é tudo que minha habilidade vocal permite no momento.
– Você deveria mesmo fazer alguma coisa – digo a ela, após o processamento da mensagem, tentando parecer natural. – Não dá pra viver desse jeito.
Nossa, como se eu conhecesse mil e uma outras formas de viver. Basta olhar para a minha vida pra sacar que não sou nenhum expert em vias existenciais optativas. Fui condenado à prisão perpétua dentro desta carne de segunda, batizada de Santiago Ventura.
Juliete não parece contente com minha reação glacial. Também, o que ela queria? Que eu pulasse na cama e batesse os calcanhares no ar? Não posso fazer isso, por vários motivos, 1) eu acabaria dando com a cabeça no lustre; 2) não sou mais criança para uma conduta infantil assim; 3) se minha cama quebrar, não tenho dinheiro para uma nova em folha; e 3) tenho meus pessimismos quanto à firmeza do devaneio intencional de Juliete. Ela é fraca pra essas coisas, tem dificuldades com essa coisa do abandono, mesmo que seja ela a desertora da relação. E mesmo se ela marcar esse gol histórico a favor da revolução feminina, mesmo as feministas confiscariam sua carteirinha, se ela trocasse um abastado dominante como aquele namorado dela por um necessitado carente como eu. Não importa como eu irracionalmente me sinta quanto a isso, não faz sentido. A derrota dele não significa minha vitória, provavelmente eu ficarei empatado nessa posição transitória, me martirizando feito um jovem leitão carnudo pressentindo as festas de fim de ano.
(Sim, pela primeira vez estou admitindo que a amo, para mim mesmo, o que já é alguma coisa deixar de lado todo aquele comportamento especulativo estou-cagando-pra-você.) Entenda, guardo o meu amor por ela numa espécie de garrafa quadrada e melada, feito um rum dourado, que às vezes sirvo num copo em doses paulatinas e vou o engolindo aos poucos, cuidando para não me inebriar com aquele líquido que desce rasgando a laringe. Admito que não sou legal com ela, a trato mal, nem sempre dou a entender que tenho curiosidade em sondar muito além do que há de bom na sua região pélvica. É que a realidade é muito áspera pra mim, quase inaceitável: quero saber o que formalmente ela veste para dormir, o que ela pensa sobre as canções do Elton John, se também acha que as teorias do Sigmund são uma fraude, se ela usa aqueles sabonetes íntimos líquidos que agora estão vendendo naquelas propagandas sutilmente sensuais. Eu tenho um interesse especial por tudo que ela faz quando não está por perto. O grande charme dela são os seus pensamentos, atitudes, reações, opiniões que diretamente não têm a ver comigo.
Eu a trato mal porque não sei o que fazer com tudo isso que eu quero saber sobre ela. Porque quando ela vai embora, desaparece, e eu não fico sabendo por onde Juliete anda, minha vida é só um quarto vazio com a lâmpada queimada e o barulho de uns carros passando lá fora. As coisas não deveriam ser assim, nem estar acontecendo desse jeito. E é porque nada é como eu quero, que eu me ponho a avacalhar com tudo. É justamente por não a odiar, que eu a odeio. Porque socialmente não ficaria bem matá-la que eu insisto em matar o sentimento impregnado em mim.
Tudo bem, houve aquela vez, em que ela deixou escapar que me ama. Mas ficar comigo seria uma outra história, difícil de ser contada. Somos bons na cama e na teoria. Na prática, me sinto reprimido e enfurecido. Juliete é quem dita as regras, ela é responsável por decidir o que vai fazer ou não, se vai ficar com aquele imbecil tosco ou comigo, ou com um outro que pode muito bem entrar na jogada a qualquer momento, ou mesmo ficar sozinha, com ninguém – troço que é bastante improvável, já que essa garota é gata pra caramba. Mesmo se eu tivesse coragem de falar abertamente sobre o quanto eu gosto dela, não saberia explicar. Por isso explicarei tudo de forma bem melancólica para um drinque a escolher, num pub após meu expediente sacripanta.
– Preciso ir embora – ela diz, procurando seus trecos pelo assoalho.
– Almoça comigo?
Sim, ela pintou aqui logo cedo pela manhã, matou alguma aula xarope sobre psicopatologia ou algo assim, e acabamos fazendo coisas. É um pouco deprimente, se você parar e analisar a nossa situação adúltera e nossa afeição corrupta. É de dar pena, na verdade. Mas antes pela manhã do que nunca, eu acho.
– Não. Tenho que ir. Posso tomar um banho? – Juliete pergunta com uma formalidade que me incomoda. Às vezes ela fica estranha.
– Pode, eu te alcanço uma toalha limpa. Mas por que a pressa?
– Você está estranho. Não curto muito quando você fica assim.
Eu estou estranho? Ela está. Viu só, como a gente combina e se entende mutuamente? Pensando bem, nós somos estranhos. Isso é estranho. Suas recorrentes aparições nos institucionalizaram como amantes, e eu não sei muito bem o que pensar sobre isso. Enquanto ela for melhor do que nada, a gente vai se vendo.
– Estou?
– Está. E eu já sei por quê – ela diz, aos engasgos. – Quando você fica assim é porque não quer mais que eu fique aqui. Quer que eu vá embora, só não sabe como dizer. E é uma tremenda de uma coincidência que isso sempre aconteça depois que a gente termina de transar.
– Ah, que conversa é essa?
E lá vamos nós, para nossa pequena dança de vaidades e recalques.
– Tudo bem. Vamos fingir que é apenas uma depressão pós-sexo. O engraçado é que naqueles dois dias em Pelotas você não ficou desse jeito. Você foi carinhoso e espirituoso comigo. E nós não... você sabe.
– Não posso acreditar que você seja imatura a ponto de achar que estou disposto a apenas comer você – digo, mesmo sabendo que uma parte substanciosa e vital da minha paixão use minha braguilha como porta de seu lar.
– Bom, eu não lembro de você ter me convidado para um cinema, pra ficar num exemplo. Não sou só isso, sabe? – ela diz, recuperando peças de roupa para sair do banheiro integralmente recomposta a sair daqui após uma ducha.
Cinema? O que vamos fazer num cinema? Se eu nunca a chamei para ver filmes ou beber milkshakes foi por puro altruísmo e consideração ao namorado oficial. A gente já faz o sexo e temos as conversas românticas e as piadinhas íntimas e as risadas pelas costas, o que então vai sobrar para o coitado fazer, senão as demais obrigações protocolares de um namoro firme? Não seria justo com o corno, na minha opinião.
– Bom, de qualquer forma, o que mais eu poderia querer? – pergunto a ela, que fica me encarando com cara de nojo. – Sério, Juliete. Não é uma pergunta retórica. O que mais eu poderia querer? Me diga.
– Ué, muitas coisas.
– Sim, muitas coisas que não serviriam de nada. Eu nunca terei você pra mim. Você está presa dentro do seu universo e eu estou preso dentro de mim mesmo.
– Tenta, Santi. Você sabe quantas vezes eu desci suas escadas engolindo um choro de raiva, jurando pra mim mesma que nunca mais ia voltar? Vou te dar uma pista, Santiago: aqui estou eu, outra vez. Sem contar as vezes em que estive na frente do seu prédio e sua luz estava apagada e eu dava uma volta nos bares da redondeza. Sem contar as vezes que a luz estava acesa, mas perdi a coragem na calçada. Sem contar as vezes em que era só passar de relance na fachada da sua casa ou do seu trabalho e a puta solidão que eu estava sentindo na hora já sumia um pouco.
– E você sabe por que sempre volta?
– Não – ela responde desencantada, como quem não tinha pensado muito a respeito. – Você me faz bem, você sabe, já disse. É tudo que eu sei. Mas talvez seja um pedido de ajuda. Quem sabe você pode me ajudar a descobrir. Eu gosto de você. Isso não é tudo, eu sei, não é tão descomplicado assim. Mas eu preciso de você. E você precisa de mim também. Eu sinto.
– Bom, minha ajuda não tem ajudado muito – resmungo.
Ela sai pra rua sem se lavar. Pego o fone numa última tentativa de falar do tamanho do meu apreço por ela, e do quanto tenho sido mau e grosso e babaca. Mas ela não atende. Limpo então as evidências de mais um capítulo da série de violações de fidelidade conjugal que normalmente vêm acontecendo no meu quarto, como a camisinha estancando a porra espessa com um nó pelo chão, e as coisas que ficam espalhadas na minha cama quando durmo sozinho agora atulhadas no bidê, e a cortina cerrada com um prendedor de roupa, para que um dos prédios mais altos não nos peguem por uma fresta de luz.
Eu gostaria que entrasse um pouco de sol por essa janela, mas hoje será impossível. Chove fino em Porto Alegre e o vento silva algumas vogais em direção ao rio. O dia está feio. Meu coração está afundado. E eu só não me atiro dessa janela porque tem grades, e eu passaria um trabalhão tentando removê-la sem as ferramentas necessárias. Outro contra, também, é que moro no segundo andar e a distância até o piso não se anuncia muito letal, então o máximo que eu ia conseguir é deslocar alguns membros importantes e ficar sangrando para a diversão de um monte de cretinos abelhudos sem mais nada pra fazer, até que alguma ambulância resolva aparecer. Logicamente, é melhor seguir fazendo o que melhor sei fazer, que é sofrer calado, entrar no banho e ir trabalhar naquela bosta de lugar.