Ela me alcança um gole de água com gás suando gelada e uns biscoitos recheados, e aí pergunta se minha mãe não vai se chatear com uma presença estranha lá. Reitero pela milésima vez que não, mas conheço minha mãe. A velha vai me passar um questionário sobre a garota e nos obrigar a dormir em quartos separados. Como se eu fosse um moleque de onze e tivesse convidado uma coleguinha para uma noite do pijama regada a batata chips e Playstation. Como se fosse errado trazer Juliete comigo nessa viagem emergente para Pelotas. Bom, meio que é, até. Mas como ela poderia julgar a situação com informações tão parciais? (Ah, eu esqueci de explicar como e por que essa garota maluca veio parar logo ao lado, mas acho desnecessário e cansativo a medida que, você sabe, ela não bate bem.)
***
São cinco horas de viagem e não importa se você trouxe junto um rádio de ouvidos ou baralho ou um cubo mágico ou então a morena mais gostosa da cidade, certo quilômetro começa a ficar chato. Os municípios não são mais localidades e sim contadores de horas. Já passamos por Guaíba, Camaquã, São Lourenço do Sul e eu nunca pensaria que um dia ficaria tão feliz avistando uma placa verde me introduzindo formalmente a Turuçu, que deve ter uns treze habitantes, contando o prefeito e seus assessores. Estamos chegando em casa, Juliete baba no meu ombro. Estou me sentindo como o personagem Johnny naquele conto famoso do Julio Cortázar, onde ele viaja que pode fiscalizar o tempo não de hora-em-hora, mas por estações do metrô. Então, quando Juliete abre os olhos lentamente, limpa a esquina da boca e pergunta se falta muito, eu apenas digo todo entusiasmado “Turuçu!”; e ela faz uma careta antes de voltar a dormir.Aí a nostalgia me pega pela nuca, tentando escapar. Lembranças da minha fase infanto-juvenil começam a pipocar na frente dos meus olhos, ainda que eu resista um pouco, não curto muito pensar em tudo aquilo. Uma das poucas cenas que consigo lembrar de mim como criança, foi num veraneio, no meio de um desses parques de diversões de salvaguarda bem suspeita e enferrujada da maresia, esses típicos de litoral. Eu chorava de cabeça erguida, querendo muito andar na roda-gigante, mas minha super neurótica e protetora mãe não deixava. Mas eu queria. Queria muito. Sempre sonhei. Foi aí que um tio, irmão da minha mãe, tentou um truque para me consolar: parou do meu lado, também olhou pra cima e disse “É, deve ser legal, mas depois de uns quinze minutos deve encher o saco”. Nada adiantou. Eu queria porque queria. Foi então que, meu tio, como um super-herói, convenceu minha mãe a me deixar subir naquele brinquedo de divertimento colossal, indo comigo. E ele tinha razão, depois de uns quinze minutos, eu enchi o saco. E descobri também que não era muito divertido vomitar algodão-doce de anis assistindo as colinas. Bem, eu jamais esqueci aquele ensinamento.
Aos treze, a Aline quis ficar comigo numa viela do pátio durante o recreio. Sorte que o intervalo durava quinze minutos, porque depois de um tempo de babação juvenil bilateral, aquilo encheu o saco. No dia de aula seguinte, eu voltei a jogar taco – uma versão nacional do beisebol – com os outros garotos. Aos quinze, quando o pessoal me convidou para figurar numa chapa aspirante ao Grêmio Estudantil, eu me senti honrado. Eu estava na época de ler livros do Gabeira e gravar fitas VHS com Anos Rebeldes e O Que É Isso, Companheiro?, mas após quinze minutos de campanha eleitoral eu enchi o saco. Tentei jogar futebol profissionalmente também, no Brasil de Pelotas. Eu até dava um bom volante, o problema é que ainda faltava meia-hora para acabar o primeiro tempo do meu jogo de estreia e já estava farto da minha carreira.
E foi assim que me tornei um porcaria nenhuma na vida. Sem religião, sem partido político, sem time do coração, sem saber tocar plenamente um único instrumento musical. Tudo me enche o saco. Natais em família, festas noturnas, discussões de trânsito, entrevistas de emprego, fazer supermercado, sexo tântrico, banho de espuma, a música “The End” dos Doors, viajar de avião, montar prateleiras, sala de espera de oftalmologista, delivery de comida chinesa, qualquer graduação em comunicação ou marketing, tudo que demora mais de quinze minutos me enche o saco. Por isso eu nunca termino nada. Por isso eu não tenho coisa alguma. Por isso eu fiz nada. Nunca me dei o trabalho de me tornar alguém interessante e nem incrível. Eu sou médio, um ser muito do mais ou menos. Não sou um ingrediente essencial para a sociedade. É como se meu relógio-biológico tivesse um botão “foda-se”. Sei que é um clichê, e que as pessoas usam essa expressão pra tudo, mas se alguma coisa faz algum sentido é isso de “foda-se”.
***
Minha mãe está no box combinado, junto com o namorado dela, um negrão com os dentes podres, todo risonho e com grandes piadas e observações idiotas guardadas para a minha chegada. Eu apresento as pessoas, meio sem jeito. Mãe-Juliete, Juliete-Mãe, Rubens-Juliete, Juliete-Rubens, e aí enquanto abraço minha mãe, Rubens abraça Juliete, e a troca é um pouco confusa porque trombo com Juliete no meio do caminho, e quando finalmente consigo ser apertado pelo namorado gigante da minha mãe, ela e Juliete também se abraçam porque abraçar é só o que fazem nessa cidade, aparentemente. Pronto, todos apresentados e se conhecendo como amigos de infância. Mas no carro minha mãe não consegue deixar de ignorar minha “namorada de outro cara” que não foi convidada, mas está aqui.Convidada para quê, mesmo? Minha mãe mantém o mistério até chegarmos num lugar lotado de gente. Na porta há um pedestal com um livro de assinaturas aberto e rabiscado, e uma sinalização:
CAPELA IV – Sr. AFONSO MORALES – ENTERRO 16H
Olho para a placa, para aquele monte de gente, para minha mãe que me olha de volta, e só consigo entender que não foi um bom dia para várias pessoas, e para o tal do Sr. Afonso em particular. Próximo ao corpo há três meninas se matando de tanto chorar, duas mais ou menos da minha idade e outra menor, entrando na fase das espinhas na testa. No primeiro banco, uma senhora gorda, talvez a Sra. Morales, se esforça para acreditar no que aconteceu ou, talvez como eu, também não está compreendendo bem qual o seu papel na tarde mórbida de hoje. Volto a me comunicar gestualmente com minha velha, e ela tem no rosto um esgar de “Sim, pode acreditar, seu pai morreu, é ele mesmo aí coberto de flores amarelas. Surpresa!”. Que porra é essa?
Eu não conheço bem as regras (eu deveria me aproximar do cadáver e rezar alguma coisa, ou cumprimentar as meninas, ou também chorar escandalosamente?), mas tanto faz, eu nem sequer faço ideia de quem seja esse sujeito, além de um provedor de esperma fujão. Não importa o que diga meu sangue, esse aí não é meu pai, eu nunca vi essa pessoa, não é um par de cromossomos que vai dizer como devo me sentir só porque um homem que eu nunca vi – um desconhecido que nunca me empurrou num balanço de praça pública ou me treinou para como lidar com garotas – acaba de morrer. Não, não, nenhum traço de indignação ou fúria, não é bem isso que vocês estão testemunhando agora. Pelo contrário, é até uma espécie de gratidão a esse senhor por ter se desviado na rota paternal muito cedo, ao menos assim não preciso sentir essa dor abismal que suas filhas (puta merda, acabo de me dar conta que essas são minhas meia-irmãs!) estão sendo obrigadas a atravessar, quando podiam, sei lá, estar de bobeira bebendo refrigerante à vontade no Burger King. Eu não saberia lidar com uma dor desse tamanho, então fico feliz por todas as pessoas que eu jamais vou conhecer e que vão morrer de pneumonia ou quedas de avião ou caindo em algum buraco, e eu não vou precisar me dar o trabalho de chorar, falar baixinho ou sorrir tristemente ao apertar o braço de seus entes queridos, desejando “condolências” ou qualquer porra similar que as pessoas dizem a quem resolve ter algum familiar formalmente morto.
Juliete faz sombra nas minhas costas, toca meu ombro e pergunta se estou bem. É claro que estou, mas dou os ombros e ela entende que estou sofrendo de algum modo, afinal ela já perdeu sua mãe e sabe como é, só que não é nada igual ao que ela sentiu naquele funeral, e até onde sei, sente até hoje. Mas ela me abraça e a sensação de proteção e aconchego que ela busca me passar é gostosa e feminina, então eu acho que posso fingir alguns minutos que isso tudo é uma tragédia, e que valeu a pena viajar cinco horas pela última chance de saber que meu pai tinha sobrancelhas parecidas com taturanas e era branco e assustador como um fantasma, como sempre o imaginei. Ei, não é que eu seja uma pessoa fria. Só não quero parecer daqueles que lutam uma vida pela aprovação paterna. Meu “pai” só teve uma chance de me aprovar, e não foi bem isso que ele fez. Só estou dando o troco, dente-por-dente. Nem aí.
Sabe quando você se lembra daquele funeral importante e que mudou sua vida? Normalmente estava fazendo um lindo dia de sol ou chovendo o fim do mundo. É assim que as pessoas recordam. Se algum dia eu voltar a lembrar do dia em que o Sr. Afonso bateu as botas, apenas vou lembrar do abraço quente e amistoso de Juliete, que ela estava comigo, e que marchamos de mãos dadas até o jazigo daquele senhor que faleceu e talvez até já tenha ido tarde, tanto-faz-como-tanto-fez.
Eu tenho vontade ir embora, mas não muita, porque a trezentos quilômetros de casa é possível uma espécie de realidade paralela, menos dura e monótona, onde podemos nos abraçar e nos beijar e nos acarinhar sem parecer dois criminosos, sem sermos agredidos por ninguém, e sem precisar ir pra cama para realizar nossos serviços secretos. Tudo bem, preciso voltar e reassumir a gerência da cafeteria, e Juliete precisa retomar seu relacionamento sério com urgência, mas talvez a gente fique até amanhã ou mais um dia, se minha mãe ou a polícia atrás de Juliete não se importarem. As coisas urgentes nem sempre são importantes.
– Como você está se sentindo? – me pergunta Juliete.
– Bem, eu acho. Meio perdido só.
– Eu posso ficar segurando sua mão?
– Pode. Por mim, tudo bem.