Sete dias depois do primeiro beijo (e da primeira transa, e do primeiro banho juntos, e da primeira transa no banho, e do primeiro sono de conchinha, e do primeiro empréstimo de escova de dentes) eu havia mudado de endereço. Não oficialmente, mas na prática, era assim que funcionava. A mãe de Marcela havia deixado o apê há três meses, para dar aulas sobre o Complexo de Golgi e esses troços numa universidade de Portugal – então que tínhamos a casa, o microondas, o colchão de casal, as lasanhas congeladas, o tapete de pelinhos de carneiro, a sacada, o chuveiro a gás, tudo só para nós e o nosso bel prazer.
Ela trabalhava até mais tarde, eu também, o que implicava em manhãs ensolaradas e barulhentas em que podíamos dormir juntos, foder, tomar café na hora do almoço, bater-papo, ouvir Nirvana e competir no Guitar Hero antes de irmos trabalhar. O mesmo roteiro, todos os dias de santo. Eu estava animado, adorando aquilo, encantado com a intimidade de Marcela com meus fluidos reprodutivos, pensando que havia encontrado a garota da minha vida. Tinha até me esquecido da outra aquela e das neuras com o bissexualismo. Agora sim, na rota certa, ao oeste dos meus sonhos, como diria Jack Kerouac. Aí aconteceu aquela discussão.
Não foi culpa dela. Bem menos minha. Mas das noites mal-dormidas por conta daquele problema que Marcela tinha desde a infância, e me ocultara durante todo o quase um mês de namoro. Não, nada a ver com o lance das pílulas coloridas e da maconha, para isso eu não dava a mínima. O brabo foi:
– Não estaciona no meu portão!
– Oi? Aonde? Hein? Marcela? Tudo bem contigo, meu anjo? – eu digo, após me refazer do cagaço às quatro da madrugada.
– Me dá aqui essa direção, seu imbecil! Você nunca mais dirige meu caminhão, entendeu?!
– Que é isso, garota? De que porra você está falando? Que caminhão é esse, meu Deus? – perguntei, suando trêmulo, sentado na cama. Nenhuma resposta.
– Seu filho da puta! – (Ruídos maxilares) – Escuta aqui, caralho! – (Dentes rangendo) – Aprenda a calibrar um pneu antes de falar comigo! – (Olhos revirando) – Seu panaca! – (Frase final indiscernível).
E aí ela voltou a roncar feito uma pedra angelical. E eu fui até amanhecer, agachado no canto do box no banheiro, protegido pela cortina plástica, agarrado nos meus joelhos, me desintegrando em pavor. Nas madrugadas sequentes, a mesma coisa. Apenas com enredos sonâmbulos variados. Não era mais sobre caminhões, mas sobre gnomos sei-lá-o-quê. Na terça-feira, celebrou um casamento indígena no meio do Pantanal. Na quarta, ela repassou diálogos de Harry & Sally, incluindo a cena do orgasmo falso no meio do restaurante. Na quinta, cantarolou músicas do Balão Mágico. Na sexta, ela era uma chef de cozinha em Auschwitz. No sábado, o fim da picada, ela reproduziu com os lábios o solo de sax do Kenny G em “Forever In Love”. E eu quase me borrava todo, dia sim, dia também, a semana toda.
Resolvemos acabar o romance, ou eu passaria o resto dos meus dias dormindo escorado sobre os braços, no balcão do Sta. Gemma Café. Ou fazendo alguma terapia psicanalítica baseada em hipnose via internet. Não dava mais, eu não possuía estrutura emocional para bancar um relacionamento desse tipo, se é que vocês me entendem, eu acho que me entendem. Então, Marcela, foi legal, mas agora estou voltando pra casa, se você não se importa.
***
Ela me acompanha até a saída, de pijama e umas pantufas enormes da Minnie Mouse, e fica de braços cruzados na porta, me assistindo apertar o botão luminoso que informa o elevador de que alguém quer dar o fora o mais rápido possível. Marcela murmura mais alguma coisa e eu estou parado no corredor, esperando a bosta do elevador que não sobe. Enquanto ela fica ali, falando uns troços de que eu sou “um rapazinho muito instável” e eu só sei tremer e suar pra burro no meio daquela cena embaraçosa. E Marcela continua, de pé, aguardando comigo a lesma do elevador. Por que essa porra não levanta? Fosse um incêndio, já estaríamos torrados. Bom, meu filme está pelo menos, a julgar pelo olhar de fogo dela apontado para mim. – Sabe... – ela diz. – Você não é a única e nem a melhor alternativa que eu tenho de viver um amor de verdade. A gente se vê por aí – fecha a porta.
Com olhos ardendo de sono, eu decidi então interromper as buscas. Tanto caí nessa vida que hoje em dia nem noto o som das minhas costas baqueando contra o chão. E mesmo correndo o risco de perder qualquer pessoa na qual valha a pena investir esforços para ficar ao lado, acho mesmo que preciso abortar a missão de um relacionamento sério e retornar sorrindo ao estágio estóico da minha vida, até tudo normalizar, no sentido original da palavra.
Foi legal, por um tempo. Mas dá uma saudade da época de não confiar em amor e garotas e esses troços. De tempos em tempos, nossas crenças (ou descrenças, no meu caso) devem ser postas à prova e era isso que estava fazendo. É assim que os homens evoluem, exceto este aqui, que para todo o sempre ficará parado no mesmo lugar. Não sei viver sozinho, tá bom, mas também não aprendi a coexistir ao lado de alguém. Resumindo, não sei o que vim fazer.
***
Claro que não é só isso. Não se trata nem um pouco dos inconvenientes berros noctâmbulos e assustadores de Marcela. É claro que Juliete ficou sabendo do nosso lance, que eu estava me envolvendo com uma outra, que eu estava avançando de fase, finalmente a deixando pra trás. É claro que ela resolveu se mexer e me procurou. Mas é claro que uma coisa aconteceu. Mas é claro. O que mais poderia ser?Sim, estamos falando de mentiras, de traição, de bola nas costas, de um sujeito que inventa motivos para sair fora de uma relação, pois pensa que o mundo é uma peça de teatro sobre ele mesmo, cujo ator principal é ele, e o resto são apenas coadjuvantes sem importância ou sentimentos. Sim. Grande áfrica, não é assim com todo mundo? Sei lá. Sei que nem usando a fé que move montanhas você conseguirá mudar um imprestável.