Dia sim, dia não, isso tudo me enoja. Não será surpresa se um dia eu sair correndo como o Forrest Gump, rumo ao infinito, ou pelo menos até a primeira loja Starbucks aberta que eu encontrar, e ficar por lá até me aposentar. Só que me falta torque pra avançar na vida. Ou vai ver as coisas que são imutáveis por natureza, não interessa se eu quero que elas mudem ou não. São dez e meia da noite.
Por hoje chega, eu preciso comer alguma coisa, só que as pessoas que trabalham até tarde nunca encontram um lugar decente para jantar um horários desses. Chegando na esquina, o semáforo para pedestres está fechado e eu me paro ao lado de uma mulher viçosa. Ela puxa elegantemente seu fumo e me olha de rabo de olho, quase assustada. No sinal verde, eu atravesso esperando companhia, mas ela não vem atrás. Permanece na esquina, às onze da noite, para ter o que comer amanhã. “Pobre do bicho, ter de se sujeitar a isso”, eu penso indo adiante.
No pátio do largo, os feirantes já se armam para o dia de amanhã, fraternizando numa roda de sucessos populares, onde há negros altos e bonitos com suas pequenas oxigenadas de mãos nos bolsos querendo ir embora. No cardápio da vida real, a sugestão é de dois espetos de gado, sem farofa, para levar. A ceia harmoniza com os níqueis no meu bolso. O amigão do trailer me vende uma Itaipava fiado, eu venho toda sexta-feira aqui, quase no mesmo horário, especialmente quando O Diário de Bridget Jones passa no TNT e minha tevê a cabo está toda um saco. Me encosto num banco e fico observando umas garotas saindo de um curso pré-vestibular, fofocando sobre os professores ou fazendo as contas sobre os candidatos por vaga em Medicina.
– Você tem cigarros? – pergunta um morador de rua.
– Tenho. Pega aí.
– Eu não fumo, deus-me-livre. Só queria saber se você quer comprar um isqueiro.
Preciso de um isqueiro mesmo, nunca tenho fogo, e pelas ruas as pessoas andam meio sem fogo também, ninguém mais tem fogo hoje em dia. Quando não estou me sentindo mal por não saber o que fazer da vida aos 25 anos, ou por destratar Juliete, ou por não ligar para minha mãe e evitar visitá-la em Pelotas, ou por procrastinar a conclusão do meu romance, me sinto mal pelos mendigos. Não sei exatamente qual meu papel na ruína deles, talvez eu devesse prestar mais atenção nos horários eleitorais gratuitos da televisão.
– Cara, eu não tenho um puto no bolso.
– Tudo bem. Me desculpe o incômodo. Boa noite, fica com Deus.
Ele crê em Deus, que ironia.
– Ei, você está com fome? – pergunto para suas costas franzinas e esfarrapadas.
– Como você adivinhou? – ele responde com humor.
Sugiro um câmbio de mercadorias sem burocracia e o maltrapilho aceita. Eu mostro a comida no papel alumínio e o coitado saliva como se fosse urânio. Fechamos o negócio. Por um momento acho que o vadio vai uivar para a lua. Mando ele escolher um e pega o menos saliente, o menos suculento.
– Obrigado.
– Não há de quê – digo.
Ficamos ali escorados no banco, dentando os troços como dois coiotes afiados, famintos e solitários, alternando a atenção com os bumbuns pré-vestibulandos dentro das calças Levi’s.
– São umas gostosas, não são? – diz o exilado urbano, meio sem tato.
– São – corroboro, sem muito entusiasmo.
– Você tem uma mulher? – me pergunta.
– Mais ou menos. Uma garota vai lá em casa, de vez em quando.
– E você gosta dela?
– Sim. Quer dizer, ela me enche um pouco, às vezes. Mas adoro ela.
– Ela é como essas daí? – ele lança um olhar avante, apontando as meninas cruzando a praça abraçadas nos seus estudos.
– Ela é melhor do que qualquer uma dessas, na verdade. Pena que eu não penso assim todos os dias. E você, tem uma mulher?
– Você acha que eu estaria neste estado se tivesse uma mulher? Olha pra mim, eu estou fedendo e rasgado e ainda com fome.
– Bem pensado, amigo. O negócio de isqueiros deve estar indo mal, ninguém mais fuma hoje em dia.
– O que você faz?
– Sou escritor. E trabalho no ramo de café, num emprego secundário – minto a ele. É o cúmulo da minha rasa autoestima me vangloriar ficcionalmente em cima de um desventurado.
– E você escreve o quê?
– Estou preparando um romance de ficção.
– São histórias que você inventa?
– É – mono-respondo meio irritado, não gosto de falar do meu trabalho.
– Legal.
Aí damos um tempo quietos, de olhos escoltando as pequenas apressadas pelo último ônibus.
– Minha vida daria um livro – ele diz.
Não dou muita bola, todo mundo diz a mesma coisa, que sua vida daria um livro. Até os cretinos acham que têm boas histórias para contar. Apenas o devolvo um sorriso polido e trago meu cigarro pós-refeição.
– Qual seu nome?
– Santiago. Santiago Ventura.
Apertamos as mãos. Eu consigo esconder um pouco do meu nojo – não sei onde ele andou enfiando essa mão.
– Nunca ouvi falar no seu nome.
– Acontece – respondo tentando esconder meu desconforto com o papo. Não quero saber o nome do mendigo, mas investigo para dissuadir o assunto chato. – E o seu?
– Meu nome? É João.
– João do quê?
– Puxa, nem lembro. Faz tanto tempo que não preencho nenhum documento nem nada. Acho que é só João.
– Só João? Sem sobrenome? Como o “Prince”? – falo, mesmo sabendo que, fora a cor da pele, o tal mendigo não é nada como o Prince.
– Quem?
– Deixa pra lá. Foi só uma piada idiota.
– Ah, bom. Sabe, você deveria me entrevistar para o seu livro. Você não sabe o que eu levo no meu peito.
Me despeço e saio correndo para casa, já sei como retomar meu romance: Você não sabe o que eu levo no meu peito. Você não sabe o que eu levo no meu peito. Você não sabe o que eu levo no meu peito – repito no trajeto até em casa, umas quatrocentas vezes, recompensando os céus pela dádiva da inspiração literária. O bloqueio acabou. Subo de dois em dois os lances de escadas e chego esbaforido no meu quitinete, me sirvo de uma taça de vinho tinto choco e acético; e de onde parei escrevo quinze páginas a fio, até as quatro da manhã. As pessoas não deveriam ignorar o que um morador de rua tem a dizer.