– Bom dia pra você também, Juliete. Como assim?
– Ainda estamos vestidos, quer dizer, eu estou vestida – ela diz, confusa, de voz veludosa e mansa, os olhos remelentos. – Não fizemos nada?
– Você quer dizer sexo? Não, nada aconteceu. Mas se eu soubesse que você ficaria tão decepcionada...
– Não é isso. Talvez você tenha voltado a ser quem eu pensava que você era antes de começar a pensar que você não era aquilo que eu pensava que você era. Entendeu?
– Hum. Não sei. Você está dizendo que foi gentil da minha parte limitar a atuação da minha mão boba à sua cabeça? Você está dizendo que sou um cara legal, por acaso? Não se engane, eu transaria contigo agora mesmo, de manhã. Vai pagar pra ver? – eu a intimo.
– É, mas você não vai – ela tira o meu cavalinho da chuva. – Há muito tempo que alguém não fazia carinho em mim. Anos, até. Desde que minha mãe morreu, eu acho – ela diz e aí me beija o rosto, toda comovida. – Bom dia.
– Bom dia – retribuo. Nossa, grande áfrica, um carinho. Posso fazer muito mais coisas, supostamente.
– Eu preciso fazer xixi – levanta subitamente rumo ao banheiro, nivelando na cintura a saia que estava quase no pescoço, de tanto se revirar durante o adormecimento.
No trajeto até lá, miro esfomeado seus quadris e aqueles cabelos negros de índia-guarani bagunçados quase até a lombar. Me ponho de joelhos na cama e espio lá embaixo através das persianas. Pareço super macho e tudo, mas estou borrado que alguém tenha procurado Juliete e visto o carro dela aqui no meu meio-fio, e agora temo que alguma manada de australopitecos esteja de guarnição, de cotovelos escorados na sombra de alguma árvore, me esperando passar. Só que não há nada lá, e eu sorrio descansado.
Ela sai do banheiro. Novamente cravo meus olhos gananciosos nela, numa fissura matinal de quem dormiu agarradinho e não fez nada a noite toda. A garota passa reto até a geladeira constatar que não tenho nada saudável ou de validade vigente pra comer. Fico então de ponta-cabeça no colchão, olhando enviesado para dentro daquele pequeno ângulo da cozinha, acompanhando a bundinha de Juliete revirar tudo, na pontinha dos pés nus conferindo os armários, atrás de alguma comida decente.
– Desculpa não ter suco de laranja fresco e waffles e geleias importadas para o café da manhã – eu grito daqui da cama. – Da próxima vez vê se traz junto seu mordomo pra dormir aqui.
Ela solta uma risada reticente de lá, enquanto dá uma colherada num pote de doce-de-leite que, pelo menos até semana que vem, está sem fungos na superfície.
– Tudo bem, eu já me achei – ela responde. – Como você gosta dos seus ovos de manhã?
– Doloridos – respondo a ela.
– Seu bobo... Vou fazer uma omelete, você quer?
Paro de me debater na cama e vou até lá ver que diabos ela está aprontando.
– O que você está fazendo, garota? – pergunto, encostado no umbral da porta, todo escabelado, só de shorts e cara séria. Cheia de mantimentos contra o peito, frigideiras, espátulas, ovos e tudo mais, ela nem me olha.
– Eu ia fazer uma omelete, já disse. Ou você prefere seus ovos mexidos? – ela diz. Tento não maliciar levando para o lado anatômico o peculiar questionamento dela. Embora sim, eu prefira meus ovos mexidos. Você sabe, os de galinha (Ah, porcaria, você entendeu!).
– Não, eu digo, o que você está fazendo aqui? Posando de namoradinha, como se tudo tivesse numa boa. Você vai tomar seu café-da-manhã e depois voltará pra casa, como se nada tivesse acontecido, e eu vou passar o resto do fim de semana sozinho, e pensando em você abraçado no meu travesseiro com seu cheiro, e numa garrafa de bourbon.
Ela fica parada um tempo, me olhando murcha e boquiaberta, querendo demonstrar desapontamento. Como se eu tivesse estragado tudo. Eu estraguei tudo.
– Ah – ela balbucia. – Sei lá, achei que a gente estava se divertindo, passando um tempo juntos. Eu gosto de você. Eu gosto daqui. Sei lá. Você é meu único amigo. Homem, amigo homem. E eu gosto de conversar contigo, você me faz rir.
– Deixa eu ver se eu entendi. Você acha que pode transitar livre pelo meu apartamento, se acha no direito de comer minha comida, tudo porque eu te faço rir, te faço cafuné, ajudo você a entender melhor o que se passa dentro da sua cabecinha e tudo mais. Legal, bom pra você, mas quanto egoísmo! E o que eu ganho?
– Uma amiga?
– Uma amiga? Não preciso de uma amiga. Grande áfrica, uma amiga!
– Tudo bem, eu vou embora! – ela derruba tudo na pia, munida de todos os ressentimentos femininos possíveis, como se realmente estivesse fazendo algo de bom para mim, logo antes. Uma porra de uma omelete! O que ela é, minha mãe?
Juliete senta na cama e começa a se ajeitar pra cair fora. Agora é a hora. Ganhar ou perder. Ela calça uma sandália e a outra eu chuto para baixo da cama. Uma onda diabólica toma conta da minha mente, uma ânsia de alguma coisa que eu não sei direito o que é, de onde vem, mas tem tudo a ver com Juliete, algo imprudente dentro de mim que não pensa no que está fazendo e tampouco nas consequências, além do prazer imediato. É uma sensação que rende 50 minutos de programa no Animal Planet.
– Porque fez isso? Vá buscar meu sapato! Estou indo pra casa, não foi isso que você sempre quis?
– Não, não vai.
– Você não me conhece quando eu quero uma coisa. Ninguém consegue me impedir.
– Eu gosto de você.
– Não seja ridículo – ela diz. E quando ameaça se levantar, a empurro de volta na cama pelas clavículas, com violência.
– Eu gosto de você! – repito, agora de olhos esbugalhados.
Ela não fala nada. Só me encara, estirada no colchão, aterrorizada.
– Eu gosto de você, Juliete.
– Não faz isso comigo... – ela me pede, fechando os olhos e prendendo o lábio inferior nos incisivos, tentando não chorar, eu acho.
– Eu gosto muito de você. Tanto.
Tanto que, aliás, eu não sei dizer. Por isso me calo. Ela bufa, tenta se levantar e aí se joga de costas no calchão de novo, tapando a cara. Eu me ajoelho e descalço a sandália, e a deslizo para baixo da cama, junto da outra.
– Eu gostaria que você ficasse. O tempo que der – digo, recuando em tom conciliador.
Ela não reage, não me responde nada, só fica escondendo o rosto, coisa que eu encaro como um sim. E aí eu levo o pé que estava na minha mão até minha boca, e vou admirando e chupando cada parte da sua pele, os dedos sinuosos e elegantes, o calcanhar levemente esfolado da sandália, o ossinho interno do tornozelo, as canelas cujos cabelinhos de um dia atritam com minha barba de oito dias. Paro nos joelhos e os mordisco um por vez, ela não consegue se mexer e só sabe chorar, chorar, chorar baixinho. Não porque ela não quer que a coisa aconteça, mas porque o que vai acontecer é bom, e ela não sabe mais o que fazer com o resto da vida que tem, já que essa é a quota ímpar de beleza das nossas existências medíocres. Parece sexo, só sexo, mas estamos apenas traduzindo o planeta Vênus, a aurora boreal, os fogos de artifício que se formam em volta de nós, quando a gente colide por aí, e acaba respirando o mesmo ar por mais de trinta segundos.
– Para com isso – ela sussurra, não muito convencida.
Não paro. Apenas pauso, de vez em quando, em alguma ou outra curva do corpo magro e traiçoeiro dela, aproveitando o pouco tempo que nos resta pra decorar cada esquina e cada simetria e cada gosto, com meu nariz seguindo uma trilha daquela mistura narcótica de cheiros, aquele perfume forte de mulher com o corpo e as emoções excitadas, um quê agridoce de hormônios, perversão, cio, suor, fraqueza e Chanel 5 adormecido da noite anterior.
– Devolve minha calcinha, Santiago. É nova...
Não. Eu vou beijando cada pedaço ao alcance dos meus lábios, inspirado, pode ser a última vez. As coxas, a virilha, o umbigo, os seios, as axilas, a boca. A boca. Principalmente a boca. Como se eu quisesse imprimir à tinta as digitais dos meus lábios nos dela, para que ela nunca mais pudesse negar que eu estive por ali.
– Anda, para com isso – ela diz, mas não resiste, não esperneia, não empurra, não desengata. Apenas se contorce, geme, amolece, ofega. E eu ali, acocado, mergulhado nas profundezas da saia dela, fazendo desenhos abstratos como se minha língua fosse um pincel de Van Gogh, querendo entrar com tudo, com o hálito e o espírito e tudo mais, para dentro dela, e da vida da garota. O cheiro íntimo da pele da Juliete é uma coisa de doido.
***
Mas aí uma coisa inesperada aconteceu, e a garota foi embora puta da vida, pra variar ela sempre arranja uma desculpa pra fazer cena e soltar as patas em mim. Juliete saiu de cima, no meio do troço, e foi pisando duro pelo assoalho atrás das suas sandálias perdidas, foi me empurrando e dizendo diabruras, me xingando de trouxa-imbecil-cretino, como se a culpa fosse minha.Me diz se Juliete não é maluca. Quando todas as peças de roupa já estavam descartadas passeando pelo quarto, ela resolveu subir em cima de mim como uma joqueta, e foi areando os cabelos compridos pelo meu rosto, peito e pescoço, remexendo as ancas por cima como se estivesse dançando lentamente pra invocar a chuva. Ora eu segurava seus peitos, ora suas pernas, ora suas nádegas, e fomos entrando cada vez mais no clima e no embalo, e quando ela passou a rebolar mais depressa, anunciando o gozo, bem, aconteceu uma coisa. Um acidente anatômico, vamos dizer.
Não sei como descrever de uma forma literária e menos embaraçosa. Se eu estivesse narrando a cena num livro, eu ficaria dias e dias acordado na frente do computador buscando eufemismos e metáforas de gosto duvidoso. Se eu fosse contar a um amigo, no dialeto urbano, apenas diria que a cabeça do meu pau escorregou e rapidamente foi parar no... na... (não consigo dizer!) então, digamos, bem, na cavidade errada, naquele lugar onde os homens geralmente querem muito entrar e as mulheres nem pensar. Ficou bom assim?
Foi isso. Eu não tive culpa, estávamos afoitos e ensopados, você pode imaginar? Não foi intencional, mas ela não compreendeu assim os fatos, e saiu catando as roupas, as chaves do carro, resvalando os pés nus pelo chão sujo e fosco do meu apê, bufando e me chamando de nomes feios e impronunciáveis, realmente furiosa e indignada, “como você pôde fazer algo assim, Santiago?”
– E quer saber?! – ela grita. – Você voltou a ser quem eu estava pensando que você era antes de começar a não pensar que... Ah, vá se danar! – disse. Aí, antes de bater a porta, avisou: nunca mais.
E foi embora. Assim. Sumiu. Desapareceu. Escafedeu-se. E eu fiquei lá, deitado na minha cama, esfregando os olhos e achando toda aquela intempestividade ridícula, e que Juliete só pode ser louca, dessas de remédios e ambulância e visitas aos domingos. Eu juro, foi pura falta de sorte, não fiz por mal, logo eu, que nem sou muito chegado nessas coisas, minhas fantasias nunca envolvem órgãos sexuais secundários e de complicado acesso, sério mesmo. Você acredita em mim, não acredita? Que porcaria isso.