Deu pra notar que Juliete está fugindo de mim, ela não tem se apresentado no café ou lá em casa, nem em rompantes e nem com hora marcada. Eu também ando me esquivando de confusões, e me mantido longe da área dela, mesmo sem saber ao certo onde fica, em que bairro, em que mundo Juliete vive. E mesmo se eu soubesse, de toda forma eu não pintaria lá.
Então é isso: não estamos nos falando, desde a noite que dormimos juntos e fizemos a coisa. Sabe como é aquele ditado, “sexo gratuito estraga tudo”. Não é um grande ditado, talvez nem seja um ditado, mas de qualquer forma pretendo repeti-lo até que no fim do dia seja considerado uma grande máxima pela esfera acadêmica. Quem sabe até eu peça a ajuda de alguns universitários fregueses mais antigos (“Como estava o seu café? Aqui está seu troco. Sexo gratuito estraga tudo. Passe adiante, por favor.”)
Mas, voltando ao campo das análises sintáticas. Não sei se você percebeu, mas estou evitando você. Por exemplo: estou evitando os carboidratos. O que o sujeito da frase está querendo dizer no emprego do verbo evitar? Que ele odeia macarrão ou chocolate? Ou que ele os adora, mas precisa fugir pois os macarrões e os chocolates não têm caído muito bem, não é o momento certo para comê-los, eles são uma tentação formidável, ou seja, significa que a criatura precisará despender de um esforço imenso para não ingeri-los, certo? Certo. Sou bom no português e não sou louco, eu sei que é. Que siga me evitando então, se isso fará você sentir-se melhor, Juliete. Mas não se engane, se você odiasse macarronadas e chocolates, ou pior, os desdenhasse com indiferença, não mandaria recados para eles, ou pensaria neles já pela manhã, não é mesmo?
Respondo um taciturno e monossilábico “Ok.” e toco as coisas aqui no café, com Juliete não preciso me preocupar. Nada acabou. Ela está me evitando porque sabe que, assim como eu, também tem calafrios quando tocada por essa sensação desconfortável.
Sabe, ela pode ter toda uma vida à parte, toda uma colcha de acontecimentos até aqui, um patamar alcançado, uma história, com namorado, a faculdade de psicologia, a herança, a mãe morta, as amigas, família e animais de estimação; e eu, o outro pedaço do conto, também tenho um fundamento, de certa forma, mesmo sem tanta tralha e sofisticação – bem, eu existo, não é, ou é apenas uma ilusão? – Só que o enredo foi modificado no dia que a gente se viu, e as circunstâncias nos levaram a dividir uma cama, pele com pele, olhos nos olhos, boca a boca, aura com aura. Não adianta, estamos presos em expectativas sonhadoras, em alternativas de uma existência mais doce, numa ligação empática que não se vê todo dia. É bobagem e perda de tempo fingir que não.
(Outro exemplo: estou evitando engravidar. Significa o quê? Que a moça está se protegendo justamente porque anda se arriscando, não é?)
***
Em todo caso, pareço não ter escolha, enquanto os dias vêm e vão. Só consigo pensar nisso. Em planos B, em opções e intercorrências. Hoje uma garota entrou no Sta. Gemma Café, o que não é nada de mais, garotas entram e saem o tempo todo, mas essa tinha alguma coisa que eu não sei explicar.– Vocês têm café para a viagem?
– Sim – informo a ela.
– Ótimo. Eu quero um descafeinado, por favor – ela sorri.
Anoto o pedido e delego à Rafaela. A tal garota tem o rosto delicado e é ligeiramente estrábica, mas do jeito charmoso e não do jeito perturbador de estrabismo, de modo que ninguém pode chamá-la de zarolha ou coisa assim. Ela é tímida e nervosa, e fisicamente lembra um pouco – em algumas feições e trejeitos, de repente – uma versão nacional da Joan Baez, especialmente na capa daquele disco How Sweet The Sound, que eu tenho aliás, e emprestaria a você, se não fosse uma edição difícil de achar.
– Com dificuldades para dormir? – eu puxo assunto.
– Oi? Ah. Não, não – ela responde após fazer uma careta desesperada de quem não entendeu onde quero chegar. E depois dá pano para conversa: – Eu gosto de descafeinado mesmo.
– Que bom – digo.
– É como fazer sexo com camisinha, não é? – ela diz, e aí se auto-censura, e depois tenta explicar, sem saber onde enfiar a cara e as mãos. – O café. Descafeinado. Tipo, se você quiser ficar tranquilo precisa fazer esse esforço. Como a camisinha.
– Entendi – digo a ela, olhando nos olhos, e ela se desfaz da cara de pavor, como quem reconhece uma alma amiga.
– Desculpa. Eu tenho esse problema. Não consigo parar de falar.
– Meu nome é Santiago, prazer. Santiago Ventura – solto o jornal e estendo a mão. – Eu tenho a mesma dicotomia ao falar. Não é um saco?
– É, sim. O meu é Sarah – ela retribui a saudação com uma mão morosa e gelada.
– Bonito nome.
– Obrigada. Tem uma agá no fim. – (Pausa) – Do nome. – (Nova pausa) – É Sarah, com agá – ela diz, trêmula.
– É bonito, ainda assim. Você sabe, com o agá – eu falo.
– É que algumas Saras com são sem o agá. Eu sou com. Você já deve ter entendido. Desculpa.
Que graça. Por um momento, sinto uma vontade de contá-la o quão adorável ela é, mas esse tipo de coisa é embaraçoso de se fazer fora das telas do cinema. (Por exemplo, eu manifestaria o desejo de jantar com ela usando como desculpa que estou irrecuperavelmente apaixonado e ela diria algo como “Mas você nem me conhece” e eu “É aí que você se engana, gatinha. Eu sonho com você desde que me dei conta que me interessava por garotas.”) Viu? Não saindo da boca do Keanu Reeves, soa estranho. Ela me acharia um tarado panaca e eu não tiraria sua razão.
– Aqui o seu descafeinado para a viagem.
– Ótimo. Obrigada. Quanto eu devo?
– Nada – eu digo. – É por minha conta.
Ela agradece, dá um sorriso desalinhado e sai andando em zigue-zague, toda engraçadinha e estrambólica, coisa mais bela. E eu fico lá, do outro lado do balcão, tentado a sair correndo atrás e me jogar aos seus lindos calcanhares e declarar que eu venho sempre aqui, mesmo quando está fechado, e que permanecerei até o fim dos meus dias, provavelmente, caso ela queira outro café descafeinado para a viagem. E também que viagem é essa que ela vai fazer, e se eu posso ir junto, para aonde ela for, eu não me importaria com o destino: se faz frio, ou 50 graus, ou oito meses de escuridão total, e tudo mais.
Mas eu ainda sou capaz de me controlar, ainda bem, parece que não cheguei ao ponto de perseguir garotas rua acima e nem rua abaixo, e isso é bom sinal, um indício que eu ainda tenho chance de conhecer uma garota como fazem os seres humanos sérios e saudáveis. De qualquer maneira, eu fico contente e orgulhoso por resistir a meus ímpetos autodestrutivos, já que essa é uma parte de mim que não sei lidar muito bem.
***
À noite, estou deitado e quase desistindo de ler A Idade da Razão, do Sartre, não sei se porque ele é chato ou porque estou com fome e não tenho nada substancial para comer. Meu telefone apita. Juliete responde meu “Ok.” e dá provas físicas e contundentes de que a psicologia é quem deveria estar estudando ela, e não o contrário. E eu digo isso baseado em nossa pequena conversação via mensagem curta de celular:JULIETE: Ok? Digo que estou te evitando e isso é tudo que tem a me dizer? Ok? Eu sabia que não deveria ter procurado você outra vez. Não farei mais isso.
EU: Ok.
JULIETE: Depois eu que sou uma pessoa indiferente e sem coração.
EU: Ok.
JULIETE: Esse seu comportamento só atesta a minha tese. Até me levar pra sua cama, você parecia bem interessado e agora reage desse modo. Na boa, se você sentisse qualquer coisa por mim, teria ficado pelo menos nervoso. Mas nem isso! Tão típico. A gente fez apenas sexo naquela cama. Nada mais.
EU: Ok.
JULIETE: Vá se foder!
EU: Que culpa eu tenho se a única forma que aprendi a demonstrar que amo uma coisa é fazendo sexo com ela?
JULIETE: Você me ama?
EU: Vá se foder!
(E assim: estou evitando falar de política. O sujeito assume que o assunto é relevante para a sociedade e não consegue tirar as eleições que se avizinham da cabeça, mas ele só não quer se complicar dando sua opinião, não é mesmo?)