Estou cuidando do caixa hoje. Na realidade, estou distraído com o jornal. Primeiro dou uma olhada nos filmes em cartaz que eu correria a assistir, se eu tivesse uma namorada para ir comigo. Não sou homem de horóscopos, mas agora sempre dou uma conferida, todo mortal faz isso quando está balançado por alguém. Como não sei ao certo o signo de Juliete, ou da minha futura e improvável amada, então faço o esforço de ler todos os doze perfis, torcendo para que ela seja de Áries, pois aqui diz que os arianos devem esperar um par romântico novinho ainda para esta semana. Na previsão do tempo diz que teremos sol, informação que sugere uma caminhada a dois pelo parque ao entardecer – isso se você tiver com quem ir, e não ficar preso no engarrafamento, e isso se o clima não reservar uma nuvem exclusiva para você, encharcando sua mente. Não sei onde os jornalistas esqueceram suas cabeças para publicar esses troços.
Por falar em tempo, alguém aí se recorda exatamente do dia que Juliete apareceu? Eu, sem dúvidas, vividamente. Eram dias gloriosos, de penumbra e chuva fina, repleto de experiências com o estoicismo. Agora, não sei o que aconteceu, as coisas mudaram, não são mais como eram antes, nem de longe. Hoje eu expiro secreções lacrimais salgadas com a versão dublada de As Pontes de Madison, nego noitadas no Liverpool X-press e no Juno’s Pub, cogito adquirir antologias em promoção da Annie Lennox e tenho me examinado no espelho com maior atenção que a habitual, o que é péssimo, de modo que venho questionando o uso de gorros nas últimas semanas. E o que é aquilo de ficar pra lá e pra cá na calçada em frente ao prédio, às duas da manhã, tirando Ed Askew na gaita-de-boca? Porra.
Garotas não são mais simplesmente garotas, mas sim hipóteses de envolvimento amoroso, coabitação e relações inter-familiares – não que eu tenha algo mais requintado que uma simples mãe para apresentá-las. Quando caio em mim, estou secando uma candidata bebericando um mocaccino em alguma mesa do Sta. Gemma Café, e sonhando com a inauguração do apartamento que financiaremos em conjunto, com o nome dos nossos filhos (eu gostaria que a menina se chamasse “Nastácia” como a de Dostoiévski em O Idiota; do garoto eu me abstenho), ou a possibilidade de adotarmos um cão, como se eu fosse com a fuça dos pobres cães (sou a favor dos gatos – não tenho um por motivos óbvios; o apartamento é pequeno demais e, se eu comprar um gato e começar a ir desacompanhado ao cinema, o próximo passo será gravar um vídeo antecipado no YouTube explicando por que atirei nos meus vizinhos e depois me matei). Que droga, que botão em mim eu preciso apertar para isso parar, cacete?
Esses dias eu me peguei tentando ser uma pessoa melhor, veja só. Quem precisa engolfar-se fundo no próprio ego quando está nem aí pra nada e pra ninguém? Recentemente tudo indica que ando ameaçado a me reinventar, me converter, me variar, me disfarçar, enfim, me tornar uma coisa que nem sei se sou, para agradar quem eu ainda nem sei quem é. Agora eu cumprimento cada cliente nos olhos, visto camisas passadas a ferro, sorrio mais, planejo visitar minha mãe em Pelotas, penso em reunir forças para assinar matrículas em cursos de capacitação e procuro nos classificados empregos dignos e sérios. Talvez eu devesse cortar os cabelos, comprar sapatos de couro da Democrata, esquecer essa utopia de ser escritor profissional, e organizar uma vida de verdade, dessas que a gente chama de Vida, em maiúsculo, e grita coisas como “não se mete na minha vida!” e “da minha vida cuido eu!” – eu adoraria alguém cuidando da minha vida, se metendo, ou dizendo o que devo fazer dela, porque eu confesso que não sei.
E eu adoraria também ter mais certezas a respeito dessa metamorfose passional. Se não há, deveria existir uma norma civil coibindo rapazes como eu de cismar com este tipo de coisa. Observe, nos bares noturnos ou em praças de alimentação dos shoppings, os grupos de mulheres se queixando da perda de tempo que são esses homens, esses tipos como eu. Como não enrolar uma garota e levar a sério um relacionamento se você ganha 20 mil por ano, mora de aluguel e não tem nenhum plano de carreira que convença seus sogros a abrir mão da filha que tanto batalharam para deixar de pé?
Aceite esse esporádico lampejo de honestidade, de autocrítica, de sensatez, de humildade minha e entenda de uma vez por todas, criatura: sujeitos do meu naipe não foram enviados por Deus para continuar a espécie, deveríamos ser proibidos de qualquer tipo de abordagem sexual, somos uma perda de tempo. Ouçam seus pais, que as educaram com todo zelo. Seus velhos estão com a razão, sinto informar.
Após esse pequeno discurso de autodepreciação necessária, me pego mais aliviado. Só que nada disso me inspira ou me consola. É como aquele ditado, como é, “os fins justificam os meios”. O caso é que não ando com motivação de fazer os meios acontecerem, é muito tarde para a Medicina, para a Literatura, eu tenho 25 anos, caramba; é muito tarde pra ser qualquer coisa diferente do que eu já consegui ser, com muito suor.
Parece pouco: uma temporada no exterior, dois amigos do peito, 77 páginas de um romance inacabado e a gerência de uma cafeteria falida. Mas você não sabe o quanto foi trabalhoso chegar até aqui. Foi uma súplica passar ileso por todo esse tempo desde meu nascimento, 25 invernos aterrorizantemente frios de vida profana e ultrajada e tediosa. Na verdade, eu penso, esses anos foram tão descartáveis que seria um desperdício desistir deles logo agora.