Não estou interessado nela e nem bolando algum jeito de abalroá-la. Mas vamos encarar a verdade: ela é bonita. Cabelos castanhos e escorridos quase até as omoplatas, pele amarronzada ao natural, cintura bem definida ao estilo mignon, feição europeia (tem uma atriz russa com uma porção de filmes nas costas que não recordo o nome, mas ligeiramente me lembra Rafaela), pés pequenos e esguios, seios que se ajeitam bem dentro do sutiã e da camiseta pólo branca que uniformiza as funcionárias. Como dizem os caras falastrões nas ruas: eu perderia um bom tempo da minha vida com ela.
Ela é uma gata, e possui aqueles defeitos que fazem uma garota soar tangível e real: um queixo meio agudo, indícios de varizes nas panturrilhas, calcanhar seco, axila um pouco gorda, sobrancelhas fortes e alusivas às taturanas, uns culotes melodiosos. Mas ainda assim. Seria ótimo rolar com ela, se Rafaela não fosse uma funcionária carrancuda e assexuada. Aí é que está, às vezes beleza não quer dizer muita coisa, sobretudo em Porto Alegre, onde é possível encontrar uma brazilian top model mal agenciada a cada 643 passos – há cruzamentos de todo tipo aqui: italianas com portuguesas, alemãs com afro, afro com espanholas, espanholas com italianas, italianas com alemãs, índias, japonesas, egípcias, turcas, polonesas, etc – o que me leva a crer que aquela turma radical contra a miscigenação não sabe até hoje de que bosta está falando, ou não gostam de mulher, ou não precisam de uma coisa diferente de vez em quando, ou o que eles precisam mesmo é de um enorme... bom, deixa pra lá. Foco em Rafaela. Sou tomado por uma vontade egomaníaca de saber o que ela acha de mim.
– Rafaela – eu a chamo.
– Sim, senhor?
– Não precisa me chamar de senhor.
– Qual é? O que você quer? Não está vendo que estou concentrada? – ela perde a dobradura lânguida do guardanapo.
– O que você acha de mim?
– Que conversa é essa agora? – ela rubra. Rafaela muda de cor como um camaleão se aclimata ao ambiente, basta iniciar qualquer interação mais estreita e pessoal.
– Hipoteticamente. Certo? Se você, hipoteticamente, me achasse um cara visualmente, digamos, atraente...
– Hum.
– Deixa eu terminar!
– Ok. Ok.
– Quais seriam esses atrativos? – eu pergunto.
– Nenhum. Não gosto de homens que andam com as braguilhas abertas.
Ela escapa para a cozinha e a minha braguilha está mesmo escancarada, de modo que me apresso em fechá-la, e depois dou uma olhadela tímida em volta para ver se mais alguém estava rindo da minha cara. Só que o Sta. Gemma Café está vazio. Droga. Isso acontece o tempo todo, parece que estou sempre com a arma engatilhada. Saio atrás dela.
– Não terminamos aquele assunto – eu protesto.
– Ai, meu saco. Você não faz o meu tipo, satisfeito?
Não. As meninas da cozinha nos dirigem um olhar de pudor que eu me adianto a desarmar, dizendo logo que não é nada disso que elas estão confabulando; e que se eu ouvir qualquer mexerico a respeito, miolos serão explodidos. As duas voltam a ralar cenouras com seus chapéus e aventais. Puxo Rafaela para o quartinho.
– Custa você responder?
– Olha, Santiago, eu acho que sei onde você quer chegar com esse papo e eu...
– Tá legal, tá legal, tá legal, tá legal. Não é isso que você está pensando. Eu quero saber porque... – não posso dizer que se trata de uma outra garota, pois aí eu daria uma rasteira na vaidade dela, coisa que a faria levar dias para se recompor.
– Tá bom. Você jura que sua intenção não é... você sabe.
– De maneira nenhuma. Eu juro. Não vou assediar você e você não vai precisar gastar com advogados.
– Você é um cara que chama atenção.
– Quero mais detalhes.
– Calma! Deixa eu organizar o que vou dizer.
– Já disse que não vou interpretar e já jurei que não estou tentando iscar você, de modo que fale o que vier à cabeça.
– Acontece que não vem nada, eu nunca pensei sobre isso antes – ela diz, desdenhosa.
– Tá bom – devolvo, ironicamente.
Ela franze a testa, chupa a unha, põe as mãos na cintura, tira as mãos da cintura, e bufa.
– Você não é daqueles despertam interesse de saída, não que você seja feio ou coisa assim, não é isso, é só que... espera aí...
Deus do céu, dai-me paciência porque eu realmente quero saber. (Que não sou feio, disso eu sei, não do tipo horripilante, pelo menos. Esses dias uma ex-quase-amor me telefonou só para dizer que assistia De Repente 30 e lembrava de mim toda cena que o Mark Ruffalo entrava, e isso não é nada mau, certo?)
– Então – ela recomeça e gesticula de um jeito como se já soubesse o que dizer. – Assim. Você tem uma coisa.
– Uma coisa? – eu levanto os olhos e penso sobre essa coisa que supostamente eu tenho.
– É. Um charme, sei lá. Você é esperto e engraçado. Mas não do tipo bobalhão. Sei lá. É um humor autodepreciativo. E você é um dos raros homens que sabem a medida certa de aplicar o perfume e aparam as costeletas na mesma altura.
– Hum – eu reflito. Não sei como isso, costeletas niveladas, podem trazer Juliete pra mim, mas... mulheres e seus padrões, vai saber.
– E quando você chega perto demais, dá uma coisa, sei lá.
Lá vem elas com essas “coisas”. E quando eu acho que o clima está ficando meio estranho e viscoso, Rafaela começa a listar meus defeitos.
– Só que você é meio grosseiro, às vezes. E seus sarcasmos são desagradáveis. E você não é muito alto, também. Isso conta. – Agora ela olha para minha testa enquanto fala. – E esses gorros que você usa são lamentáveis.
Chega.
– Obrigado pelo exercício. Não foi tão ruim assim, foi? – eu digo.
– Isso foi estranho – diz Rafaela, soprando alívio. – Mas divertido, até.
– Mas isso não me faz um bom partido, não é?
– Como assim? Eu não namoraria você, se é aí que você quer chegar.
– Por questões socio-econômicas?
– Ahn? Não. Que bobagem. Nós garotas fazemos nosso dinheiro, nos dê um pouco mais de crédito. Está tão difícil encontrar um homem decente que se ele não tiver filhos por aí, pagar as próprias contas e não morar com a mãe já é grande coisa.
– Mas o fato de eu ser pobre influi, não? Como vou dizer isso sem melindrar você... bem, garotas dão bola pra essa coisa de grana, certo?
– Não as que merecem um cara legal como você – ela diz, docemente. – Só que não vejo você como homem.
Sim! Sim! Por que a gente não tem mais dessas conversas? Eu devia ter feito isso há milênios! Bem, é isso. Eu não tenho filhos. Não estou devendo nada por aí, não jogo, não uso drogas, sem parentesco com agiotas, e nenhum banco me acenou com cheques especiais. No mais, moro há trezentos quilômetros da minha mãe e às vezes não consigo lembrar da voz ou do cheiro dela. Ah, e sou charmoso e engraçado, embora não seja nenhum John Mayer da vida. Talvez eu não esteja tão a perigo e nem seja tão assombroso quanto eu penso. Quem sabe os próximos dias me revelem alguma chance.
– Agora é sua vez – diz Rafaela.
– Hein?
– Me diga você, o que você vê de bom em mim?
Que ideia estapafúrdia é essa? Bom, replico a ela todas as objeções que matutei a seu respeito logo antes e, mesmo os atributos enumerados por mim sendo todos de ordem lasciva, varonil e superficial, ela ganha o mês porque não existe uma garota no mundo que não goste de ser admirada, nem que seja por uma matilha suada de pedreiros. No entanto, como ela citou as toucas que uso contra o frio, passo-lhe também algumas restrições.
– Pena que você é tão mal-humorada. Não fosse isso, eu perderia um tempo contigo.
– E você é um galinha!
– E você é uma mal-amada!
– E você é um arrogante!
– E você é uma esquisitona!
– E você é um... vá se foder!
– Depois de você!
– Retardado!
– Vaca!
Não tinha como dar certo, no fundo a gente se odeia e mal se suporta. Rafaela sai pisando duro, eu me esparramo no sofá e acendo um.
***
Não funciona assim, perguntar a uma pessoa o que outra veria de bom em você. Rafaela afirma que tenho uma, uma, uma coisa, e de repente Juliete ainda nem tenha se dado conta dessa tal coisa, somente de outra coisa, vá saber. Aliás, essa análise não contribui em nada. Naquela noite com Juliete ficou claro, nossos beijos são bons, nossos cheiros se batem, nossos papos são cheios de vibrações e nexos que só a gente entende, nossa transa foi ótima, embora a gente precise sofisticar e trabalhar um pouco mais em cima disso na próxima improvável oportunidade. Mas, e daí? Não é suficiente para compor um par, é?Eu sei o que está errado. O que está errado é que, depois da passagem daquela nuvem onírica e promissora, começo a me dar conta que Juliete não é uma garota, propriamente. Ela é um ritual. Algumas pessoas nunca esquecem com quem perderam suas virgindades, ou do seu décimo oitavo aniversário, e o que eu acho que vai durar pra sempre é apenas a lembrança dessa transformação.
Se apaixonar pela primeira vez, como está me acontecendo, é como o primeiro porre de vinho tinto; eu tenho certeza que no futuro meu corpo todo vai sacudir cada vez que eu enfiar o nariz no gargalo e sentir esse cheiro. No duro, só uma vez, basta isso acontecer uma vez na sua vida pra você nunca mais se contentar com o que você tem. Só que, por enquanto, eu não tenho nada e o furo é justamente esse: eu quero ter e não estou sabendo como.
O que eu preciso é de uma possibilidade, de um esquema. Observo que a maioria cria laços, intimidade e afeto não por um indivíduo, mas por um esquema, por um mosaico de referências, normalmente porque não conseguem descartar a aptidão de imaginar o relacionamento a longo prazo, meses a frente, décadas até. E aí que entra o esquema: genes, a carreira que ela escolheu, os amigos que tem, os esportes que pratica, se os pais são feirantes ou diplomatas. Tudo conta. Arrebate, sexo bom e coisas em comum não enchem o estômago. Isso é só um empurrão.
Enfim, é o conjunto que importa. O que vou fazer então? Mesmo que algum dia alguém me olhe e enxergue em mim um copo meio cheio, eu sei que a porção que carrego não dá nem pra mim, que dirá dividi-la com outra pessoa. Quem se sujeitar a ficar comigo morrerá de sede, provavelmente.
***
As pessoas superestimam isso. Rezam toda noite para encontrar uma paixão que acalme o coração. Que bobagem. Quem já sentiu esse troço forte por alguém sabe que essa coisa de coração é um mero eufemismo para um sentimento arredio, cansativo e incontrolável. Uma parte está correta: sim, nós levamos quem adoramos dentro de nós, mas isso não tem nada a ver com o coração. Nossas paixões platônicas ficam embolotadas numa esfera celulosa de carne dura e sanguínea e tensa e pulsante, entranhada mais ou menos entre o ventre e o cu.