Ao contrário dos grandes espetáculos, a cortina se abriu após o show. Estamos na cama e como um grande olho dourado, a claridade âmbar da iluminação pública alcança pela janela metade do corpo branco-em-pelo de Juliete. Ela está deitada ao meu lado, aguardando a normalização rotacional do planeta, agarrada ao edredom e fazendo de uma extremidade uma bolinha com as duas mãos, perto do nariz. Diz ela que tem meu perfume. As pernas magras como caules de tulipas. A franja em pândegas, anunciando o resto dos cabelos, aparados em cascata. Seios médios e ainda firmes, como dois merengues, cabíveis no côncavo da minha mão. Os sinuosos e límpidos pés 36. A pele de cheiro ácido e doce, suavemente gelada após suar friccionando barriga-com-barriga. Ela vem até mim, ziguezagueando sensual como uma serpente mortífera, e com a língua dá um bote demorado no lóbulo da minha orelha.
– Eu posso dormir aqui?
Faço que não escutei e procuro meu telefone no bidê. Consulto a hora exata: são 01:29. Acho que ela está cometendo mais um dos seus pequenos equívocos. Talvez ela se ache a Julia Roberts tentando fugir dos paparazzis, e esteja confundindo meu bairro com Notting Hill. E, apesar de também ser naturalmente cômico, não sou Hugh Grant. Não quero escondê-la aqui e não estou disposto a levar outro murro na cara, embora eu deva confessar que o último tenha valido a dor e cada minuto de humilhação. Sem ele, Juliete não teria por que demonstrar sua culpa e nós não teríamos... você sabe. Deixo ela no ar, se perguntando coisas sozinha, e cato meus cigarros no bolso traseiro da minha calça, atirada na poeira do meu assoalho frio e sem carpete.
– Você tem que parar com isso – ela diz, gesticulando com dois dedos colados nos lábios inchados de beijar, imitando um fumante. Juliete fica um amor fazendo mímica.
– Olha quem falando – digo. – Até pouco tempo atrás você me implorava por cigarros.
– Só que agora eu estou te pedindo beijos. E as coisas estão mais claras agora. Sei lá onde foi parar aquela minha vontade estúpida de fumar.
Não vou cair nessa conversa. Não deixe ela te pegar, Santiago. Não morda a isca. Nada está claro aqui. Vocês fizeram sexo, e daí? Com exceção da sua própria vida, isso acontece o tempo todo na cidade. Nada de extraordinário. Logo logo o Cosmos será regularizado e, para equilibrar com a maravilhosa sessão lúbrica que vocês dois recém aprontaram, prepare-se, algo ruim acontecerá: talvez você perca o emprego ou os movimentos das pernas, ou então Juliete em breve anunciará um noivado de arromba com aquele rudimentar seboso que ela apelidou de namorado. Quem mandou transar com a garota dos outros, todo ridiculamente apaixonadinho ainda por cima? Agora se cuida, garotão.
Juliete, 23 anos, anjo decaído, olhos fugitivos. O que seu corpo tem de impecável, sua mente tem de conturbada. Com um único chute na bunda, é capaz de me expulsar para fora da órbita. Seu coração sofre de uma dor indiscernível, mesmo quando analisado com auxílio de um eletrocardiograma. Cheia de ninguém-me-entende e quem-se-importa, se faz de vítima para atiçar a compaixão dos outros. Artimanhas vulgares, antigas, fáceis. É vista por todos lugares com um – teórico – namorado, faz seis anos, e o traiu há minutos sem ainda saber por qual razão; se porque ele desce a porrada nela só para variar, ou porque os dois não têm ido pra cama há meses, ou porque ela se afoga em vergonhoso silêncio enquanto ele confere outras bundas no restaurante, ou porque ela cansou de fingir que ele não anda com vadias pra lá e pra cá – ou porque, aparentemente, eles não têm mais nada em comum, além da abastada condição financeira e a interligação de seus compassos sociais.
Já Santiago e Juliete, Juliete e Santiago são o quê? São nada. Quase nada. Uma cadela e um verme parasitando sua pele. Eu sou o verme. Uma cadela e um verme. Aí um ótimo par romântico (de alguma forma embriagada a gente se merece e se pertence). Em mim, ela encontrou mais vida.
– Você ainda não respondeu minha pergunta. Posso ficar contigo essa noite, Santiago?
Não. Não sei. Vou ver. Não me enche.
Em linhas gerais, a regra é a seguinte. Prefiro trazê-las todas ao meu apartamento, pelas tais razões: a) eu fico sonolento depois do ato físico; b) temos tevê a cabo; c) posso fumar aqui, se eu sentir que quero; d) atravessando a rua há um ponto de táxi. E como, geralmente, elas sentem-se propensas a papear, podem fazê-lo no caminho de volta pra casa, os taxistas adoram falar das circunstâncias meteorológicas e de futebol. Em domicílio inimigo, eu não contenho meu torpor, ronco de babar e acabo passando a noite, e isso acaba tecendo conflitos desnecessários no futuro. No mais, esses encontros privados devem ocorrer de domingo à sexta-feira – pulando segundas-feiras e excluindo definitivamente os sábados. Segundas-feiras deixam uma má impressão quanto à performance, e sábados dizimam com seus álibis: é difícil explicar por que você tem de trabalhar na porra de um domingo pela amanhã e deve ir embora agora.
Como hoje é segunda-feira, e minhas regras foram quebradas pelo acaso jogado à porta do meu apartamento, não sei bem o que dizer à Juliete. Não sei se acho uma boa ela dormir comigo ou não. Quando me decido, largo a guimba lá embaixo, no meio-fio, e sento na cama, próximo dela.
A garota está misturada aos meus travesseiros, tem a pele cálida do aconchego e ronca musicalmente. Os lábios entreabertos feito criança, aos borbotões. Eu me aclimato no meu próprio colchão, barganho um pouco do meu próprio edredom, e deixo escapar um aceno de carinho beijando a moleira de Juliete. Sua franja está com cheiro de sexo. Num gesto inato e sonolento, ela se encaixa no meu peito, aos gemidinhos. (Durma bem meu amor, eu falo, mudo. E aí vou até às cinco da manhã olhando para o teto escuro onde fui amarrar meu burro.)