Ser legal, um cara legal, só serve para o caso de você ser marido de alguém ou próximo disso, de modo que as garotas procuram esse tal arquétipo quando sentem que chegou a hora de assentar suas almas, ganhar peso e procriar feito coelhos. E eu estou solteiro. Na verdade, mais que isso, sou tão solteiro quanto alguém pode ser. Sozinho, até. E, sob esses termos, surfar nessa onda benigna e caridosa de ser um rapaz bacana não tem me prestado para muita coisa. Eu já disse essa semana que preciso dormir com uma garota qualquer?
Estou matando tempo enquanto trago unzinho com o ombro encostado na faixa de parede que divide o Sta. Gemma da agência de viagens ao lado. Adoro fazer isso, ou seja, ficar ali de pose, curtindo o frio e lembrando que não é nenhuma fase ondulante da minha vida. E que, ultimamente, tenho me sentido o primeiro anacoreta de Porto Alegre. Não sei o que está acontecendo com este inverno em especial, parece que as garotas têm preferido moços com cabelos cortados à escovinha, altos demais, com ombros largos e sem muito a dizer, ao invés de moços matracas, de estatura média, de envergadura normal e mechas encaracoladas que não se ajeitam direito dentro do gorro verde. Ou talvez tenha sido sempre assim e eu não havia prestado atenção.
Um jovem casal passa por mim brigando e invade aos trancos o nosso café. Descarto a guimba, dou uma derradeira conferida no rebuliço da rua e volto ao serviço, meu tempo acabou. Não sou eu quem vai perder o próximo ato da cena.
Eles sentam-se numa mesa íntima, próxima à janela. Ainda de pé, a menina pede um pingado duplo e um sanduíche de atum, enquanto luta para se desvencilhar do casaco chique que prendeu no seu cinturão da moda. Ela usa uma minissaia e uma meia-calça ao mesmo tempo, escalas de cinza, e um corte de cabelo louro, semelhante ao da Cameron Diaz em qualquer filme com ela, só que não fica tão bem na tal garota, assim meio fora do peso. Suas maçãs do rosto estão rubras e dá pra ver que ela está enfurecida com o relacionamento atual, embora seja impossível compreender de imediato o porquê. A ala masculina da trincheira não quer beber nada, não deseja comer nada, não precisa de nada além de, bom, talvez de um esparadrapo para calar essa boca sentada de frente para o coitado. Se “vontade de viver” constasse em nosso cardápio, certamente ele pediria uma dose.
Uma garçonete monta o sanduíche de atum enquanto outra prepara o pingado com leite vaporizado, e os dois tentam se acertar. Ela está no estágio da tromba de elefante/braços cruzados, e o coitado só faz tirar som da chapa de vidro que forra a mesa, com três dedos da mão direita, visivelmente macambúzio. Ela diz “olha pra mim” umas trezentas vezes e o cara segue imóvel, com a íris melancólica e torta, acompanhando os passantes lá fora. Até onde captei, o auê foi sobre uns sapatos. Ela os queria, ele achou o par horroroso e endossou por cima que ela já possuía mais calçados que uma centopeia; e aí a garota, que não parece ser do tipo que leva desaforo pra casa, o mandou não se meter em sua vida, que estávamos falando de uma mulher independente e blá-blá-blá, consumidora de quantos sapatos coubessem no bolso. Aí acho que o rapaz sugeriu que ela fosse se catar na presença ocular da vendedora, e pronto.
Não sei, na verdade. Apenas estou especulando. Mas é sempre a mesma coisa. Posso ver que ambos têm uma visão muito clara de como o outro deveria ser, e agora estão magoados com suas próprias construções panorâmicas em relação ao par que escolheram de olhos fechados.
Casais assim estão por toda parte, só trocam o tópico de discussão. Hoje são sapatos, amanhã é porque eles têm frequentado mais a casa da mãe dela do que a dele, ou porque ela acha impraticável trepar todos os dias e ele não, ou porque ele ficou transtornado porque ela não ficou tocada com a quinta sinfonia de Beethoven, ou porque ela anda meio com vontade de escalar a Cordilheira dos Andes, mas tem medo de propor o desafio porque ele é meio bobão e careta. Esses defeitos tiranos que a gente planta no outro, quando precisamos de absolvição prévia para as besteiras que começaremos a realizar nos horários de almoço, geralmente às quintas-feiras, o dia mundial da infidelidade. É quando cai a ficha e passamos a fermentar pensamentos marxistas, do tipo se-essa-pessoa-fosse-tão-maravilhosa-assim-não-estaria-namorando-comigo e outros raciocínios na mesma linha.
É até engraçado. É como se fosse uma encenação teatral anti-matrimônio que o Ministério da Saúde ou o da Educação organizou na semana de prevenção contra as doenças conjugalmente transmissíveis. Antes de Juliete, eu só havia me apaixonado uma vez na vida, e esse alguém foi Dublin, a cidade, que conheci através das fotografias que uma garota com quem andei saindo trouxe de lá. James Joyce, Rúgbi, Dia de São Patrício, Bono Vox, Irish Coffee (que lá o povo refere-se apenas como café) era tudo que eu sabia sobre o país, e mesmo assim estava contiguamente encantado, movendo a grana que fosse para embarcar no primeiro voo. Somos desse jeito, nos apaixonamos por quem não conhecemos, e depois que chegamos lá, ficamos manifestamente irritados com os sapatos do amado. Tudo isso porque, no fim da viagem, percebemos que o outro não era aquilo que nos faltava.
Aposto, foi essa a conclusão do Casalzinho Mais Irritado Do Mundo e estou com pena deles. Ela descobriu que ele não é seu porto seguro, apenas um país estrangeiro, e vice-versa. Nenhum dos dois, ao embarcar, sequer cogitou que a língua era difícil de acompanhar e que os hábitos nativos são simplesmente rígidos e imbecis. Mas vamos cometer o mesmo erro toda vez, ninguém amaria ninguém se não houvessem essas lacunas tenebrosas dentro de nós mesmos. Algumas pessoas, quando sentem essa vontade de sabe-se-lá-o-quê, fumam um cigarro ou fogem para a Irlanda. Outras resolvem sair na rua e pedir alguém em namoro. Não entendo. Tem gente que não consegue se afeiçoar à própria mãe e acha que vai amar até a morte um sujeito qualquer que conheceu no banheiro de uma festa idiota.