– Laços de família, como diria a Clarice Lispector. Sabe como é. – Juliete diz, enquanto atira uma pedrinha no lago.
– É, eu sei.
Eu disse que sei, mas não sei, na realidade. Minha mãe é filha única, meus avós já foram pra uma melhor e não sei bulhufas do meu pai. Naquele tempo (por volta de 1987, próximo à fronteira), quando você engravidava uma garota e não estava muito a fim de dar continuidade ao núcleo familiar, o jeito era sumir do mapa ou levar um tiro de espingarda na bunda; de modo que cair fora foi o melhor que ele pôde fazer por nós. Bem, o caso é que não tenho ninguém e, no entanto, não acho os comerciais de margarina tão ruins assim. E também nunca li nada da Clarice Lispector, embora tenha comprado dois exemplares de sua obra há uns oito meses. Talvez, chegando em casa, eu folheie algum dos livros pra entender do que Juliete está se queixando, e assim poderei passá-la uns conselhos mais encorpados.
– Minha mãe era o ponto de equilíbrio, sabe? Enquanto meu pai só enxergava a vida monetariamente, ela dava conta de mostrar o outro lado das coisas a mim e meu irmão. Não foi o bastante, quando ela se foi eu tinha treze e meu irmão nove, eu acho. Ainda precisávamos dela e não preciso dizer que meu pai não deu conta. Odeio ser obrigada a chamá-lo de pai. Parece horrível o que estou dizendo, mas... o quê é um pai, afinal? Você sabe?
– Não. – E não sei mesmo.
– O seu morreu?
– Não sei.
– Ah. Entendo. – Ela faz uma pausa e lança outro pedregulho na água, o mais longe possível, só que Juliete não é das garotas mais fortes. – Bom, pelo menos o seu te poupou de conviver com uma madrasta perua e consumista e artificialmente bronzeada.
– Mas tenho certeza que seu pai lutou pelo melhor pra você e seu irmão. – Tento fazer o gênero conciliador.
– Santiago, querido. Você não sabe do que tá falando. Conforto? Dinheiro? – ela solta um riso assustador e inadequado. – Você pode ter azulejos raros e torneiras de cristal decorando seu toalete, mas ainda assim isso só serve pra esconder aquilo que você faz, todo mundo sabe que você faz, mas ainda assim você não gosta de admitir que faz, ou seja, cocô.
Confesso que não gostei da palavra “cocô” na boca de Juliete. Não combina e meio que estraga o clima. Outra coisa, essa gente realmente chama banheiro de toalete? De qualquer forma, Juliete está certa. Todos nós fazemos merda. Alguns merecem perdão, outros não. Alguns se arrependem, outros não. Alguns erram a vida inteira e nem desconfiam. Alguns, como meu pai, fazem apenas uma vez e acabam cagados por toda uma vida.
Jogamos mais algumas pedras no laguinho e concluímos juntos: como planejar se tornar uma garota de 23 anos infeliz, se você quiser: a) perca sua mãe, a pessoa que você mais amava e mais amava você; b) tenha um pai omisso e mercenário; c) um irmão viciado em cocaína e sabe-se lá mais o quê; d) namore um babaca-otário-patético-narcisista; e) curse psicologia a fim de tentar entender tudo isso e tenha vontade de vomitar sua própria vida a medida que estuda cada novo arquétipo de Jung e todo aquele pessoal.
Não é, propriamente, mais hora de almoçar, mas Juliete dá a ideia de um restaurante japonês que fica a algumas quadras daqui.
– Ah, sei não. Acho que não sei comer com aqueles pauzinhos – digo a ela.
– Chamamos de hashis, Santiago – Juliete me corrige, com a paciência de uma professorinha do primário.
– É, isso aí. Não sei pegar as comidas com aqueles troços.
Na verdade, nunca nem tentei. Já provei algumas culinárias importadas, mas ninguém nunca me convidou pra comer peixe cru e minha dieta financeira nunca sentiu falta.
– Você nunca experimentou, não é?
– Não – admito, dando os ombros.
– Você vai adorar, confia em mim.
– Não tenho certeza.
– Você é um escritor, rapaz. Precisa de novidades, conhecer as culturas. Se não, vai escrever sempre sobre as mesmas coisas – ela insiste. – Considere isso como uma experiência. Você precisa de novas experiências.
– Se é assim, não podemos simplesmente ir lá pra casa e transar? Estou certo de que daria numa experiência e tanto. Eu contaria aos meus filhos-homens, até.
Primeiro ela faz uma cara intransigente de quem não gostou, mas quando percebe que eu estava apenas sendo pentelho, me dá um soquinho no braço que eu me dou o trabalho de fingir que doeu. Sei bem, desde os tempos de colégio, o que soquinhos de garotas querem dizer: ela gosta de mim.
– Você prometeu – ela diz.
– O quê?
– Que ia parar com essas insinuações.
– Jurei que não forçaria beijos, mas na minuta não falava nada sobre sexo contigo.
– É a mesma coisa. Não quero que você pense nessas coisas.
– Vou tentar. Mas vou logo avisando, não tenho tido sucesso ao controlar meus pensamentos, ultimamente.
– Vamos logo, estou com fome – ela sai na frente.
– Eu também.
Faço uma última vistoria na grama em que estávamos sentados, limpo os indícios de mato no meu traseiro e saio logo atrás dela. Andamos poucos minutos por uma trilha bem explorada até desaguar num efervescente semáforo para pedestres, e foi contrastante como se tivéssemos acabado de atravessar o portal de um mundo paralelo e secreto. Existem pessoas além de mim e Juliete? Eu não tinha perdido essa noção. Ela pergunta se eu sei de qual restaurante japonês ela está falando e eu assinto, sem muita certeza. É logo ali, umas cinco quadras mais ou menos, só que estou com tanta fome que ele parece se localizar na zona central de Nagasaki.
Na hora H eu resolvo dar pra trás porque, mesmo para meu olho destreinado, aquele parece ser um restaurante caro. Porém ela teima, me puxa pelo braço e me convence com um argumento típico da sua personalidade: ela quer pagar a conta, e se eu não aceitar é porque simplesmente estou sendo machista. Por alguma razão quero provar à Juliete que não sou machista.
Então estamos agora aguardando um barco carregado de iguarias japonesas visualmente não muito apetitosas, enquanto brinco que sou um marciano usando os tais hashis como antenas telepáticas. Digo a ela com uma voz robótica que vim à Terra para estudar seu corpo e depois reportar minhas descobertas aos seres superiores do meu planeta. Juliete parece ter superado a década sem sua mãe e está rindo embaraçada no meio do restaurante quase vazio. E eu começo a me sentir muito bem.
– Experimenta isso – ela traz um negócio até minha boca preso nos pauzinhos, com uma habilidade incrível.
– O que é? – pergunto por que parece uma minhoca passada na manteiga e tem uma aparência horrorosa. – Acho que vou passar.
– Anda, come logo. O nome é Shimeji. São cogumelos! Abre essa boca, vamos. – Me mantenho irredutível, como um garotinho diabólico rejeitando cenouras na cadeirinha de alimentação.
Aí o troço escapa e cai na minha calça de brim que comprei com três notas de dez, há um ano, mais ou menos. E a gente gargalha em profusão, Juliete esquicha saquê pelas narinas e quase inunda o barco, tudo sob as vistas de expectadores formais, gueixas de mentirinha, empresários que desperdiçam seus sábados e senhorinhas vegetarianas que olham de canto aquele casal bonito e abobado que não é bem um casal. Mas, dá pra ver, nós seríamos um grande casal, você sabe, se houvesse alguma possibilidade.
– Quer saber? Você é um cara legal, Santiago. Gosto de conversar contigo. Se as pessoas fossem um pouco, só um pouquinho como você, o mundo teria uma chance. Há tempos eu não tinha um sábado tão leve e divertido. Obrigada.
Foi bom para mim também, Juliete me proporcionou um aniversário agradável, mesmo sem saber dos meus 25 anos. E ela tem razão. Eu sou legal. Legal e absolutamente fodido. Se você também acabou de se despedir de uma garota na porta da sua casa e agora está se auto-erotizando no chuveiro, com todo um resto de sábado livre pela frente, bem-vindo ao clube dos caras legais. Aqui está sua carteirinha, ostentando uma 3x4 com sua cara legal e idiota.