Ainda estamos estáticos na minha cama, só que agora Juliete deixa escapar um pingo de secreção lacrimal. Que infernos há com essa garota?
– Hoje faz dez anos que minha mãe morreu. – Diz ela, calma e anestesiadamente, mirando o céu.
Após alguns milésimos de excitação pelo drama não envolver namorados idiotas, percebo que isso não é sobre mim e já estou recomposto e pronto a consolá-la.
– Poxa. Sinto muito. Ela devia ser importante pra você – digo, meio sem tato. Nunca sei o que falar quando alguém morre, mesmo que tenha sido há uma década.
– Era sim. Muito. – Ela diz e funga, ao mesmo tempo.
Talvez exista algum cemitério que ela quer que a gente vá.
– Você quer visitá-la? Levar algumas margaridas ou coisa assim?
– Não. Ela não está em lugar nenhum. Quer dizer, ela queria ser cremada, sabe? Fizemos uma cerimônia no iate do meu pai e atiramos suas cinzas no mar.
Talvez ela queira ir até o mar, mas a praia fica a quilômetros e eu não tenho carro e nem iate.
– Já sei.
Juliete parece ter uma ideia alternativa. Ela sugere chegarmos até o lago, pois, teoricamente, qualquer terreno hidrográfico pode conter uma fração de sua mãe. Faz sentido.
É como dar leite num pires raso a um gatinho doente, muito doente, canceroso até. Alimentar esse envolvimento com pequenos encontros e gestos enigmáticos é um sopro de vida, no entanto qualquer esperto consegue ver que não vai dar em nada, que a coisa toda vai morrer até mesmo antes de chegar ao fim. Nossas discrepâncias são o câncer do nosso fatídico encontro por acaso, e não me venha com essa história de completude e laranjas deixadas pela metade, ninguém aqui é adolescente ou fã de Nicholas Sparks. Não estamos falando apenas de círculo e classe social ou de rapazes pobres papando filhas de grandes empresários do ramo – mas também de paladar musical, manias, objetivos e compreensão de vida – afinal, quem diabos é Juliete, não só filosoficamente falando, mas o que ela gosta de fazer quando tem um tempo sobrando? Jogar golfe, será? Não tenho ideia.
Tudo que sei sobre ela não explica minha explosão de fogos quando a beijei por, sei lá, oito segundos? E mesmo se você insistisse numa explanação passo-a-passo dos meus sentidos naquela hora, você não gostaria do resultado porque eu precisaria de advérbios prolixos de intensidade ou metáforas piegas sobre filmes musicais.
(Assim: quando sinto o primeiro sinal do gosto de caqui doce na boca de Juliete, começa a tocar em algum lugar algo como “Strawberry Fields Forever” e as paredes somem e entra um gramado vasto, e quando nos damos conta estamos os dois deitados lado a lado e melecados por morangos silvestres trazidos por pequenos esquilos animados pela Pixar, e rodeados por uma ciranda de anões malabaristas que chegaram numa Kombi amarela, toda grafitada com símbolos proclamando por paz e amor mundial. Então começaria a chover arco-íris em pó e por aí a coisa iria...)
Sei lá, há montes de coisas que eu poderia sugerir aos produtores. Só que Juliete não é Penélope Cruz e nem Anne Hathaway, esse rolo não contém nenhum filme, Juliete não tem uma trilha sonora digna de estatueta, eu não sinto cheiro de pipoca no ar, nem a iminência de uma outra cena-love-story de beijo e, tampouco, posso esperar por créditos no final numa tela escura. Talvez, quem sabe, a tela seja invadida por uma escorregadia película de tinta vermelha e a inscrição “viu o que você fez comigo, sua vaca?” E aí, provavelmente, eu nunca mais teria vontade de entrar num cinema novamente.
Receios à parte, eu topo acompanhá-la. Há um lugar onde gosto de ir quando estou embrutecido, e lá tem uma boa amostra de água, embora não seja muito fluvial. É um pequeno lago afastado dentro do Parque Marinha, na direção de quem vai para a Zona Sul. Qualquer imprevisto, digo, se não servir ou se a mãe dela não estiver por ali, a imensidão do Guaíba está logo do outro lado, atravessando uma avenida. Só que aí a gente vai precisar dividi-lo com um monte de outras pessoas.
Combinado. Digo a Juliete que preciso de uma ducha e ela faz um movimento nasal bonitinho de quem concorda, mas sei que apenas está sendo engraçadinha. Enquanto espera – na falta de uma Vogue ou de uma Marie Claire –, com uma visível má vontade ela escolhe algo na minha estante para se distrair.
Eu já estava com uma toalha encardida no ombro entrando no banheiro quando ela me interrompeu, de repente. Juliete queria que eu jurasse que não a beijaria novamente. Olhei pra ela. Porque sua mãe havia morrido, resolvi fazer o que ela estava pedindo, com os dedos cruzados em pensamento.