» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).
(009)
Não é um bom dia pra fazer aniversário. Quero dizer, não é um bom momento, uma boa fase. Não que eu esteja numa pior, já estive na pior e lembro que a pior não era nada parecida com isso. Na pior não havia refeições diárias, não existia um quitinete só pra mim com tudo que preciso dentro, não havia créditos para telefonar para minha mãe e nem TV a cabo e nem este computador onde posso ouvir os Smiths enquanto fumo um cigarro na janela ou atualizo a ordem alfabética dos meus livros ou cozinho algum macarrão rápido.
É que, sei lá, não tenho gostado muito de mim, do meu emprego, os livros que estou lendo não estão empolgando, e acho que ando socialmente castrado nos últimos tempos, em termos de garotas. Ah, e é sábado e eu estou de folga, e sábados de folga supõem algum tipo de comemoração, só que não estou muito a fim. Talvez, mais tarde, eu beba um guaraná em algum boteco pé-sujo ou volte para Dublin.
Não sei se você sabe onde moro, fica ali numa ruela paralela entre a universidade federal e o burburinho da rua mais boêmia da cidade. É um pequeno prédio relativamente novo e com poucos andares, construído ardilosamente para abrigar estudantes que vêm do interior cursar alguma engenharia ou qualquer outra coisa. Sei que não sou nenhum estudante, mas o empreendimento pertence à Dona Agenara, proprietária do café onde trabalho e ela o alugou para mim com um desconto obeso, quem sabe por gratidão por eu ter posto ordem no negócio dela. Isso já faz uns quatro anos. E, antes que você me interpelar, os vizinhos até que são bacanas. Eles não têm cachorros, não cozinham coisas fedidas, não escutam axé music (não até onde vão meus ouvidos, ao menos) e na maior parte do tempo estão com a cara em polígrafos didáticos.
No mais, tenho boas e más notícias, quais você quer ouvir primeiro? Boa notícia: Juliete está do lado de lá da minha porta; sei porque apesar de não ser um prédio classudo, temos campainha e olho-mágico. Má notícia: ela deve ter aparecido no Sta. Gemma querendo saber de mim e algum tagarela contou da minha folga, do meu aniversário e, por conseguinte, do meu endereço. Boa notícia: não sei se tenho outras boas notícias. Má notícia: são onze da manhã, eu não tomei banho ainda, estou com meu casaquinho de capuz velho e desbotado (era preto, agora é cinza) e com um item da minha coleção de gorros.
Abro e ela está com a testa encostada no umbral da porta com um cara exausta, os olhos cabisbaixos, como quem não sabe direito o que está fazendo aqui. Eu também não pergunto, mesmo querendo muito saber. Boa notícia: ela também está usando um casaquinho de capuz, só que o dela é vermelho-sangue, desenhado pelos caras distintos da Adidas e tem uns bolsos frontais enormes, onde ela pode repousar as mãos quando não sabe bem o que fazer com elas. Juliete está linda; os olhos tristes e amendoados, a franja está desenhada de um modo diferente que o usual (mais aberta, meio Anne Hathaway em O Diabo Veste Prada, antes da transformação – embora eu seja obrigado a dizer que ela não é tão bonita quanto a Anne, pelo menos sem aqueles efeitos especiais de Hollywood), o rosto pálido do frio contrasta com os lábios róseos.
– Não sei o que deu em mim de vir aqui. – Diz ela, e faz um gesto de resignação com a boca, meio que murchando e recuando os lábios.
– Tudo bem. – Jogo panos quentes.
Alguns caras puxam pela cintura, alguns caras puxam pela nuca, alguns seguram pelos cabelos, alguns caras pedem beijos, outros usam fantoches como recurso para mostrar o que querem e outros nunca tomam atitude nenhuma. Eu puxo Juliete pelo lábio inferior e dou um beijo suave (pouco invasivo, sem língua, saliva e outros acompanhamentos). Apesar do gemido nos primeiros segundos, ela me afasta gentilmente com a mão espalmada no meu peito, como quem rejeita mais uma dose depois de ter bebido demais.
– Não sou este tipo de garota que você está pensando – ela diz, frígida.
– Não sei de que tipo de garota você está falando. E não estou interessado por tipos de garota. O que me interessa em você é você.
– Hum. – Ela murmura. – Posso entrar?
– Pode. Só que para isso eu terei de sair – eu digo, visivelmente envergonhado por estar recebendo um integrante da realeza do meu meia-água sem muitos lugares pra sentar.
Ela entra e com três passos já alcançou a cama, e agora está sentada com as mãos juntas sobre o colo, sem comentar a bagunça do edredom e a xícara com sobra de café no bidê, com gorduras na superfície e umas oito bitucas de Lucky Strike submersas. Me sento logo ao lado, imitando a mesma posição. Observo Juliete um pouco mais, pra ver se juntei as mãos direito e ali ficamos, em silêncio durante um bom tempo, os dois olhando através da janela sem enxergar nada além da luz branca e ofuscante oferecida pelo quase meio-dia.
Boa notícia: beijei Juliete. Má notícia: ela não retribuiu como eu gostaria. Boa notícia: pelo visto ela não sabe do meu aniversário e nem é por isso que ela está aqui, sei disso, mesmo sem qualquer outra pista afora sua quietude e as mágoas estampadas no rosto. Má notícia: eu não sei direito o que fazer. Eu não queria que ela me machucasse com histórias sobre outros caras, mas, pela sua fisionomia, acho que ela não tem uma outra opção.