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» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(008)

Quando nenhuma garota lamentosa entra aqui, nosso expediente termina às 22 horas. Sou obrigado e prefiro trabalhar à noite porque sou o responsável por encerrar o caixa, e o turno atrai apenas estudantes noturnos que, na minha opinião, são os mais suportáveis – esses não soam como gralhas carentes e polissilábicas, eles realmente vêm dipostos a estudar, logo na maioria das vezes estão sempre em silêncio envoltos em algum material importante ou exaustos de passarem a maior parte do dia se matando num emprego sério.

De modo que o outro lado da minha existência acontece na parte matutina, é quando corro na orla do lago para manter a forma física de escritor barato, pago contas e consumo sebos e mais sebos. Ontem, procurando por algo diferente e mais agridoce do Vonnegut, topei com uma edição rara de O Retrato de Dorian Gray e quis presenteá-la com ele, não sei por que, talvez como um pedido de desculpas simbólico; ela já o leu e não parece ter gostado muito, e Juliete parece mais uma daquelas garotas que quando querem ter alguma coisa não investem em livros, e sim compram sapatos ou iPads ou pôneis ou casarões à beira mar.

No entanto, eu só queria confirmar que seu bilhete estava mesmo coerente, tenho atuado como o idiota perfeito, e o livro do Oscar Wilde era adequado para mostrar o que eu planejava mostrar: vamos voltar ao começo, eu nunca esqueço de nada que você já tenha me dito, eu lembro de você quando passo por vitrines e, certo, a gente até pode ser só amigos, se é assim mesmo que você quer. Mas vou logo avisando, seremos os piores melhores amigos do mundo. Comprei o livro, por nove pratas, e espero que ela capte a mensagem.

Juliete entra no café. Pelas seis do mesmo dia, para um happy hour com mais sete colegas das aulas de psicologia; sei porque todas estão caminhando de forma equilibrada em cima dos seus saltos, andam bem vestidas e alinhadas com cores sóbrias, e usam rabos-de-cavalo. Preciso arrastar Juliete pra fora do bando e não consigo pensar numa boa estratégia, pressinto que aquelas horas assistindo o Animal Planet não me serviram de nada. Tenho uma coisa pra você atrás do balcão, eu penso quatro vezes seguidas, mas ela não é muito boa em telepatia.

Já sei, vou até lá educadamente, pergunto se as senhoritas estão satisfeitas ou querem mais alguma coisa e todas elas se mostram agradecidas e me dirigem um sorriso civilizado. Todas elas, exceto aquela de quem eu esperava alguma reação. Com as pernas cruzadas e os cotovelos sobre os joelhos, ela só me olha com aquela mesma cara de paisagem. Talvez ela esteja chateada, talvez ela não queira ser registrada dialogando com um obsequiador da área de serviços gastronômicos, talvez já esteja tudo na boa com o tal do namorado, talvez eu tenha me enganado sobre aquele lance de começar de novo, e possivelmente foi um equívoco sofrer um baque nas minhas finanças comprando aquele livro velho e empoeirado do Wilde. Então digo que qualquer coisa é só chamar.

Agora é a vez de Joel entrar no Sta. Gemma. Joel é um dos meus amigos mais consistentes – sim, eu tenho amigos, dois na verdade, obrigado por perguntar. Ele anda meio sumido, mas ligou cedo informando que daria uma passada no meu café. Parece que ele recebeu uma grande lição sobre ironia: arrumou uma namorada movido não por nobres sentimentos, mas pela praticidade de transar o tempo todo, de modo que agora está uns noventa dias proibido de tocar a parceira por alguma razão que nem ele e nem eu conseguimos decifrar. Aí Joel achou que seria útil e confortável desabafar a coisa, e acabou me adotando como seu garçom-muro-de-lamentações de estimação.

– Então foi assim que aconteceu – ele conclui.

Sei que ele estava palestrando sobre seu problema de não-sexo, mas me perdi em algum capítulo e o larguei como se fosse um romance ruim de algum pensador francês.

– Tá vendo aquele bolinho? – eu pergunto.

Ele enverga o rosto, e por sobre o ombro dá uma checada na mesa cheia de garotas sorridentes.

– Oh, sim. Isso pode ajudar – diz Joel. – Mas não sei se eu conseguiria uma delas. Me parecem todas, você sabe, deusas.
– Não, não. A garota que te falei.
– Qual? – Joel pergunta, confuso e salivante.
– Como “qual”? A que apareceu chorando aqui duas vezes. – Pela cara sofrida, ele não está sacando. – A metidinha. Que cursa psicologia. Que briga com o namorado o tempo todo. Que eu disse que era encrenca.
– Desculpa, cara, mas é que você fala sobre um monte de mulheres – ele diz, atordoado.

Eu perco as esperanças.

– Bem, ela está ali. – Ele volta a olhar para a mesa, sem a discrição razoável.
– Rapaz, não sei qual delas é, mas sendo qualquer uma daquelas, posso ver que você tá bem encrencado.
– Ok, é a abstinência falando. É a de rabo-de-cavalo.
– Todas usam rabo-de-cavalo.
– A da franja cortada rente aos olhos.
– Aquela que tá vindo pra cá?
– Sim! Disfarça, porra! – eu grito à capela.

Joel, que nada bebia ou comia, tem a brilhante ideia de segurar um porta-guardanapos quadrado e metálico para disfarçar. Eu finjo que sigo o que estava fazendo, ou seja, sigo aparentando que estou picando alguma coisa nenhuma.

– ...então é assim que aquela usina elétrica no meio da floresta amazônica vai funcionar – termino de explicar a Joel, como se estivéssemos falando sobre meio ambiente e tribos indígenas afetadas pela enchente.
– Oi. – Juliete diz.
– Oi. – Joel diz.
– Oi. – Eu digo com o rosto vermelho, como se tivesse deglutido pimentas mexicanas.
– Estavam falando de mim?
– Eu não. – Joel se defende com uma feição apavorada, como uma criança pega no flagra no jardim de infância. – Ele estava. – E me entrega, o boquirroto.
– Obrigado, cara. Você não estava de saída? Boa sorte no seu problema de relacionamento.
– Até mais. A gente se vê. – Joel dá um soquinho desajeitado na vidraça do balcão e segue seu rumo.

Olho para Juliete e faço um sinal com as sobrancelhas, do tipo como-andam-as-coisas e ela me pergunta se li o bilhete de semana passada. Eu assinto, com a cabeça. E largo com firmeza O Retrato de Dorian Gray sobre o balcão, enrolado num papel transparente que uma das garçonetes arrumou pra mim.

– Achei isso numa loja, isso me lembrou você, uma coisa levou a outra e... considere como um pedido de desculpas pelas grosserias. Todas. A de ter ignorado você, de tratar você mal de alguma forma, de ter desejado você sexualmente, enfim, por tudo.
– Viu como você consegue ser legal? – ela diz, fazendo uma cara teatral de surpresa. – Deve ter sido um esforço enorme pra você e estou surpresa que o gesto não tenha te custado nenhum braço ou uma perna.
– Não, só alguns mangos. Mas vê se não abusa. – Eu jogo o pano de prato sobre o ombro e inclino meu corpo. – Amigos?

Ela dá um sorriso afirmativo com os olhos e o resto você sabe. É hora das colegas irem embora, elas vêm todas ao balcão em fila, pagam com seus cartões de crédito e perguntam achando meio estranho se ela vai dar mais um tempo ali, papeando com esse aí. Elas não usam exatamente esses termos, mas sou escolado e sei muito bem que é isso que elas querem dizer. Até mais, voltem sempre, garotas. Vocês são todas bem-vindas.

Aí, Juliete e eu, enfim sós, temos uma conversa amistosa e franca, a primeira delas aliás, e eu tenho certeza que ela também se despediu com a sensação de que foi um dos papos mais – vamos dizer assim – repletos de conexão e ritmo e sentido de nossas vidas até aqui. Falei de como vim parar aqui e de uma foto minha que trouxe comigo (eu aos oito no jardim lá de casa, fantasiado de Rambo e uma metralhadora de madeira com uma alça de feltro improvisado, apontando para a lente) e que ela achou fofo e um dia quer ver.

Juliete contou ter trauma de abelha e que seu pai não é nenhum milionário como eu possa pensar, mas é dono de uma marca boa do varejo local, uma daquelas que você diria “sim, conheço” ou “já comprei uma torradeira lá” ou “aqueles atendentes são uns bananas” se eu dissesse aqui o nome da loja, só que não vou. E falou do namorado: eles estão juntos há um tempo que ela não consegue dizer sem fazer alguns cálculos rápidos e que estão num estágio do relacionamento onde os envolvidos – as mulheres principalmente, encaremos os fatos – começam a questionar tudo. Você já deve ter ouvido falar, parece que o cara passa mais tempo polindo sua camionete, ou sendo estúpido e ciumento, ou pescando com os cupinchas do que assistindo, sei lá, Um Lugar Chamado Notting Hill na cama com ela. Então Juliete diz que, às vezes, experimenta um tipo de solidão que duvida que algum homem tenha entrado em contato em toda a história da humanidade, e que, pra piorar, alguém novo sempre entra na jogada – não é muito decente da minha parte, mas espero que esse alguém seja eu seja eu seja eu! – Aí, após um vácuo e uma olhadela no relógio, Juliete decide que é hora de ser sugada pela realidade e voltar pra casa.

Só que antes ela se despede do meu rosto com uma marca de batom grená. Se algum daqueles caras do Guiness Book estivesse na cadeira ao lado bebendo um café, neste instante reportaria a seu chefe que o recorde mundial de tempo beijando uma bochecha acaba de ser batido. Aí, ele anotaria o nome completo de Juliete e faria algumas fotos nossas juntos.

– Você viu que te deixei meu telefone? – ela pergunta, sem me olhar nos olhos, revirando a bolsa atrás das chaves.
– Sim, claro. Pode deixar, se eu sentir saudade de alguém não dando a mínima pra mim, eu ligo pra você.

Juliete faz uma carinha questionando se eu estava apenas sendo um rapazinho mau nas últimas três horas e eu digo que estou só de farra. Talvez ela nem folheie o livro, mas diz docemente que adorou e sai pela porta, balança os cabelos para os dois lados procurando pra que lado da calçada deixou seu carro. Aí cria asas de anjo e sai voando. E eu ainda tenho os sacos de lixo pra tirar.