Pela manhã aconteceu um troço esquisito. Eu vigiava a transição do leite do caminhão fornecedor até a cafeteria e aproveitava pra fumar o primeiro do dia. Aí um viciado entra em cena feito um gambá, afana um galão de cinco litros e sai deslizando pela calçada. Num ímpeto protetor de todos os clientes que amam leite, saio correndo atrás feito louco.
O gatuno é baixo, ágil e esguio, mas está abraçado num galão pesado, logo é questão de tempo agarrá-lo pelo capuz, me basta desviar de mais alguns cidadãos abismados, algumas fruteiras, engraxates, jornaleiros, e todo tipo de gente que fica papeando pela rua sem ter o que fazer. Quando o delinquente juvenil vai ultrapassar duas senhoras gorduchas, dá com o leite num poste e o garrafão vai ao meio-fio. Ele mantém a marcha injustificadamente, e eu também, embora o galão tenha trocado de mãos. Não sei direito o que estou fazendo, mas tenho pra mim que fui invadido por uma generosidade fransciscana e agora quero de qualquer jeito dar para ele o tal do leite. Vai ver ele tem um filho bebê ou uma mãe reumática. O pivete revesgueia pra trás e não entende patavinas.
Estou quase abraçado nele. Ele acha que vai apanhar ou vai preso ou vai morrer. Me desculpo entre cem e duzentas vezes e imploro para que fique com o leite, tudo largando bufos asmáticos inerentes de um fumante. O garoto ajeita a gola e olha para os lados paranoicamente, mas logo o tranquilizo, não é nenhum programa de auditório. Leve o leite, por favor. Retorno as três quadras e digo aos outros que não tive pernas. Entro de fininho e faço que vou informar os policiais.
Não sei o que me deu. Sei que passei o horário do almoço lembrando dos meus dezessete anos – a idade daquele garoto, talvez –, quando resolvi deixar minha mãe pra lá e buscar meu sonho aqui na metrópole. Ela queria que eu conseguisse um canudo de Medicina e não posso culpá-la: toda mãe sonha com um filho cirurgião ou troço que o valha. Nunca conheci a mãe de algum escritor, mas tenho certeza que elas não nadam num mar de rosas e rezam uma porrada de novenas todas as noites. Sinto saudade da velha, só que até hoje não tive coragem de contá-la que eu queria – quero, eu acho – ser a porra de um grande escritor. Ela sabe que trabalho num café e tudo, mas decerto a coitada pensa que estou me sacrificando pra chegar lá. Lá, quero dizer, em algum lugar.
Sonhos. Que pegadinha. Sonho é só uma coisa chata que você fica louco de vontade de contar e ninguém quer saber; não vai acontecer mesmo. É como se eu tivesse combinado com a realidade: o que acontece no sonho, fica no sonho, ok? Sabe, se você abrir um livro, digamos, funcional, desses que supostamente ajudam as pessoas a viver melhor, ditam como devemos direcionar nossas vidas humilhantes e miseráveis, você tem ideia do que vai encontrar sobre isso? Algo como “somos aquilo que sonhamos” ou por aí. Que mentira. Agora abra um livro de literatura, talvez alguma coisa do John Steinbeck. Está lá, pra todo mundo ler, flutuando nas linhas da vida real, sem rodeios: nós, todos nós, ninguém escapa, somos nossos sonhos frustrados. Nenhum humano, jamais, conseguirá ser tão ou mais bem-sucedido que as próprias ambições.
Tá bom, se você fizer o que estou fazendo agora, ou seja, esfregando a parte interna de um copo com um pano de prato e observando alguns universitários reunidos num canto, no fundo à esquerda, você não vai sacar nada do meu lamento. Não há crise ou inflação ou falta de esperança, no meu campo de visão, agora. Só boas perspectivas, para o futuro e para hoje à noite. Eles parecem todos felizes e bem-acabados e conectados e frisantes. Não sei por que, mas não gosto de gente falante, externamente identificada, histericamente feliz. Elas, me parece, estão sempre escondendo algo assustador enquanto estão aí, romanceando a própria melancolia e solidão.