Eu não tenho carro e sei que isso soa conspiratório contra minha masculinidade, porém me saio bem, normalmente. Moro na área central e os primeiros encontros costumam acontecer na área central. Primeiros encontros não envolvem montanhas, vinhos e fogueiras; apenas cinemas, parques, cafeterias, museus, bares noturnos e pistas de boliche, de modo que para as investigações iniciais, o centro é uma zona perfeitamente funcional.
Não ter carro há partes ruins, há partes boas. Partes boas: sem trocas de pneu, você pode circular pela rua gratuitamente, sem acidentes de trânsito, ainda não há flanelinhas dando palpite na sua maneira de sentar em algum banco público da praça. Partes ruins: diversas, especialmente quando o tipo de garota que você escolheu pra sair não combina com ciclovias. Não sou de convenções ou machismos, mas eu posso explicar, eu acho: alguém precisa ser largado em casa, certo?
E quando é o rapaz quem paga impostos rodoviários, todos sabem como acontece – ele pisa no freio, desliga o carro e espera. 1) Se ela estiver a fim, vai convidá-lo pra um café. Se ele também estiver (vou estar, eu sei que vou), já estará no portão. 2) Se ela não estiver no clima, dirá que convidaria pra um café, mas alguma tia chamada Emília está dormindo no sofá, porque veio de Arroio Grande fazer uns exames e montes de outros pretextos (mas todos sabemos que o motivo real é que você confessou ligar pra sua mãe todos os dias). Bem, já está tudo ensaiado. É assim que deve ser. Não há danos maiores.
Eu me atrapalho quando é ela quem desliga os farois. Ela quer subir, você também quer (eu sempre quero). Mas garotas não dizem “posso subir e tomar um café?” ou “posso usar seu banheiro?” Garotas não bebem café à noite, a não ser garotas-escritoras com prazo vencido; e garotas não também usam banheiros dos seus hipotéticos futuros maridos no primeiro encontro, pois admitem a chance do vaso sanitário entupir. E isso pode fazer o casamento ir por água abaixo.
O que eu faço nesses casos? Simples. Dou a impressão de ser debiloide. Ela desliga o carro, apaga os farois. Ela quer, não quer? Eu acho que sim. Ela acha que eu acho que sim. Eu acho que ela acha que eu acho que sim. Ela acha... (enfim, você entendeu). Aí chega o momento em que a rua começa a ficar perigosa e eu tenho de perguntar. Isso é o brabo. Ela pode ser meio tontinha e dizer que não bebe café depois das dez, e só se tocar que café não era café já em casa, como aconteceu com George Costanza naquele episódio em que ele precisa trocar o cassete da secretária eletrônica da namorada.
E perguntando a coisa há o risco dela presumir que eu penso que ela é esse tipo de garota, e me dizer “Não sou esse tipo de garota”, quando o tipo de garota que estou pensando é o tipo de garota agradável, boa de conversar, que eu adoraria conhecer melhor, servir um chá de camomila para o caso de ela não ser uma escritora em estado de procrastinação, e ir até uns beijos na minha poltrona nova, comprada especialmente para confortar garotas do tipo – o meu tipo, o tipo interessante, independente do tipo.
Só que não sou bom com transmissões de pensamento, assim ao vivo. Óquei, óquei, sou um cara de bons canais, de ótima programação, sem muita propaganda e, baseado no horário nobre do encontro, já deu pra sacar que tenho audiência razoável. No entanto, é como se no meio do vendaval eu precisasse subir no telhado e ajustar minha antena para que ela compreenda que aquele sofá combina bem com o tipo de filme que vamos assistir. Aí parece que perdi meu controle-remoto, quando vejo estou fazendo uma novela, e tudo que ela entende são ruídos e chuviscos. Nessa parte eu já escorreguei e caí do telhado.
A verdade é que essa coisa de one-night-stand não é bem comigo. Não porque faço o gênero romântico; ou porque não saio com o tipo de garota que curte essas noites de amor isoladas; ou por não julgar aprazível a ideia de dormir com uma semi-desconhecida que pode muito bem ter um pentagrama tatuado entre os seios. Gosto dos riscos. É que, hoje em dia, organizar um primeiro encontro é tão comum quanto noites de cometa, e você não vai querer estragar tudo fazendo sexo dentro dele, não é?
Sei lá, há montes de regras, ou talvez seja fricote demais pra minha idade. Talvez seja aconselhável fazer algum exame de DNA pra saber onde foram parar meus cromossomos Y. Ou, quem sabe, eu revoluciono o sistema de namoros testando a possibilidade de dar uns amassos na carona de uma bicicleta. Ou faço o óbvio e dou um jeito de me automobilizar. Mas, na boa, eu até compraria um carro, se já não soubesse que o problema não é motor ou o tipo de garota. E sim, eu e toda a capacidade que tenho para ser um sujeito neurótico. Só que aí eu precisaria de um recall materno, e não é bem pra esse tipo de útero que estou tentando voltar.
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Quem nunca saiu com uma pessoa para esquecer outra pode dar o fora, vá fazer outra coisa, aqui não é seu lugar. No momento, este espaço está reservado àqueles que sabem de que porra estou falando porque, como eu, são suficientemente imaturas para realizar este tipo prosaico de besteira. Você precisa ser sensato e adulto pra ficar em casa remoendo sua tristeza e disfarçando seu sofrimento com algum método budista, com carboidratos ou mesmo com a televisão. Nós, imaturos e ocidentais, ficamos emburrados em algum bar, na companhia de algum outro emburrado com quem geralmente acabamos flertando na internet.
Entrei numa pizzaria com essa criatura maluca que aceitou sair comigo e, com cinco minutos de conversa, percebi que o troço estava ficando sério e que eu precisava dar no pé. Mas já? (Quem inventou essa coisa de autoestima? Por que, a cada encontro pré-amoroso, somos obrigados a exacerbar nossa criatividade a fim de nos safarmos? É tão errado assim simular a morte de uma tia, ir embora e simplesmente nunca mais ligar? O desgraçado que definiu a sinceridade com um valor moral da família nobre dos valores morais certamente não sabia em que bosta estava mexendo. Se eu fosse essa pessoa idônea que as revistas de comportamento pregam que eu seja, haveria aqui, no meio desse restaurante, uma chacina de autoconfiança: “desculpa, eu tenho que voltar pra casa, não deu certo, seu nariz é demais pra mim, mas tenho certeza que um dia alguém vai amá-la nariguda do jeito que você é”. É assim que a coisa deve funcionar? Não. É certo? Não sei. Às vezes o certo parece errado e o errado parece certo, isso nunca lhe aconteceu antes?)
O encontro é misteriosamente abreviado, talvez ela não seja o tipo de garota que gosta de se enganar e isso é muito gentil da parte dela; comigo e com ela mesma. É sempre inteligente quando, de alguma forma, evitamos hemorragias sentimentais de qualquer ordem. Com o que me sobrou de cavalheirismo, me ofereço para levá-la até a porta de seu carro. Por ironia do trajeto, caminhamos lado a lado por alguns minutos, e há uma atmosfera formal e complacente, arrematada com papos amenos e pouco digressivos. Não estou prestando muita atenção, aliás não tenho prestado muitas atenções desde que Juliete apareceu. Porém, no entremeio de uma frase, tenho quase convicção de que ouvi aquilo que os conselheiros-fast-food dizem quando também estão perdidos diante do seu problema de relacionamento: “siga seu coração”.
Cá pra nós, não tinha nada a ver com o nariz ou o papo furado, não é? Foi só uma armadilha que criei para mim mesmo, e que eu mesmo caí como um patinho. Se você coloca na sua cabeça que quer uma coisa – uma outra coisa –, não há santo, conversa agradável ou nariz perfeito que convença seus coqueteis bioquímicos do contrário. Defeito por defeito, todos têm os seus. (Atrás da minha barba de três dias há crateras remanescentes da era das acnes; no primeiro jantar sério de namoro, essa garota conheceria minha imperfeição, e essa seria apenas a primeira delas, de modo que foi melhor o relacionamento não dar em nada.)
O tédio foi apenas um álibi: ela apenas não é Juliete, o que eu posso fazer?
Contornando o Parque Farroupilha na ida pra casa fiquei pensando nessa coisa de siga-seu-coração. Por que não os tradicionais até-mais-a-gente-se-vê, ou um trivial foi-legal-conhecer-você, e sim esse bordão sobre coração e blá-blá-blá? Marquei tanta bobeira assim a ponto de ela sacar outra no páreo? Nem reparei. Mas, o que isso quer dizer? Que não temos outra alternativa, só pode. Se você não consegue parar de fermentar afeto por uma determinada pessoa, como o cérebro pode ajudar nesse caso, já que ele é o comandante responsável pelas ilusões? Sempre ouço os outros dizerem que estão indecisos entre seguir uma coisa ou outra, e nunca entendo essa batalha extremista entre cabeça e coração. No meu caso eles são amigos inseparáveis, trabalham em equipe, são co-fiadores das minhas missões emocionais, são mais ou menos como Batman e Robin, Lennon e McCartney, Tango e Cash, Kerouac e Ginsberg, enfim. “Siga seu coração”, que bobagem.