Durante a semana eu penso em Juliete, e penso em trocar o fornecedor de fiambres, e penso em Juliete, e penso nos próximos acontecimentos nas páginas de Grandes esperanças, do Dickens, que comecei a ler semana passada. E penso em Juliete, e penso em mandar para o conserto a velha máquina de filtrar café, auxiliando assim a produção. E penso também em Juliete, e penso que tenho passado tempo demais aqui dentro dessa porra. Preciso sair com uma garota, tipo, já. Hoje à noite.
Estou especialmente irritado porque é o primeiro dia das aulas do segundo semestre. Não das minhas, deus-me-livre, não vou mais a aulas desde sei lá eu quanto tempo, e vai ver é por isso que me tornei um bem-sucedido gerente de uma cafeteria mal localizada. Tampouco estou antenado com o calendário letivo, deus-me-livre, você não precisa de muito estudo para constatar isso quando o estabelecimento está cheio de universitários pedantes.
Honestamente, não sei o que essa moçada faz aqui no Sta. Gemma Café. É verdade que não temos uma grande estratégia de marketing e nosso maior esforço para atrair clientes é deixar a porta aberta. No entanto, sei que essa gente não é bem o alvo. Nossas mesas não são numeradas, cada uma delas leva o nome de um escritor famoso e sua principal obra dentro de um estojo aveludado (Virginia Woolf, Julio Cortázar, Machado de Assis, Mark Twain, García Márquez, etc, eu mesmo os escolhi com todo cuidado), logo, supostamente, nossos fregueses deveriam gostar de literatura, o que não é bem o caso desses universitários, que só devem ter folheado Dom casmurro por obrigação e não compreendido bulhufas. A dona do lugar os adora, vive dizendo que, no fim das contas, são eles quem pagam as nossas.
Só que, já deu pra notar, eu odeio os universitários. Não sei exatamente por que, mas desconfio que seja por a maioria deles terem grana pra fazer suas refeições na rua sem arruinar suas finanças no fim do mês. Eles parecem todos bem encaminhados e bem assessorados e bem vestidos e bem viajados. Grande áfrica. Qualquer um pode viajar. Eu mesmo, que sou pobre e nunca pisei numa faculdade, passei dois anos em Dublin limpando vasos sanitários. Não foi um grande intercâmbio, o aroma do mijo irlandês é bem semelhante ao nosso, mas ainda assim. Lá eu aprendi a preparar cafés metidos à besta, comecei a escrever meu romance e uma vez atendi a Evanna Lynch quando trabalhei numa Virgin Megastore. Pelo menos eu acho que era a Evanna Lynch.
Tudo que eu aprendi foi com a professora rua, ela sim ensina tudo o que você precisa saber. Por exemplo: não existe amor, apenas livros sobre amor. E esses universitários, que nunca leram Grandes esperanças e duvido que já tenham posto os olhos em qualquer coisa do Dickens, acham que sabem tudo sobre tudo, escrevendo suas teorias malucas que não servirão para porra alguma. Numa ocasião, um deles pediu um cappuccino e um croissant sem recheio, e largou sobre o balcão uma encadernação intitulada Não-existência: uma análise socrática sobre merda nenhuma. Certo, não era bem esse o título que li rapidamente, mas isso interessa a alguém?
Eles vêm aqui, sentam-se com os pés sobre as mesas, gargalham alto, ordenam coisas às minhas garçonetes e conversam intelectualidades complicadas e elitistas que não levam a nada, e ainda acham realmente que o país depende deles, como se fosse preciso ter seu nome grafado em cadernos de presença para ter reflexões profundas. Eu tenho reflexões profundas, embora as minhas se concentrem basicamente em romances vitorianos, cafés e quadris femininos.
Não precisei fazer qualquer cursinho pré-vestibular ou algum teste vocacional para descobrir o que eu queria ser. Eu li em dois dias O apanhador no campo de centeio e pronto. Meu currículo está fisicamente na minha estante, onde há pilhas de livros, e eu fico muito nervoso quando alguém chega perto deles, especialmente os do John Fante – eu tenho duas edições de Pergunte ao pó, para o caso de uma garota pedir emprestado e não devolver antes de me obrigar a terminar com ela. Se você é desses que gostam de classificar as pessoas logo de cara, preciso dizer que sou escritor, mas quem paga minhas contas é a jornada diária de quinze horas como criado do Sta. Gemma Café. Eu nunca publiquei nada. Coisa que não me aborrece de todo, porque café é minha terceira força motriz de vida, dos assuntos que mais sei falar sobre – literatura e garotas vêm antes, não sei bem a ordem, a coisa se inverte dependendo da estação. No inverno costumo folhear mais livros, no verão costumo encontrar mais garotas.
Se você gosta de chamar as pessoas pelo nome, devo lhe comunicar que fui batizado como Santiago, mas apenas porque o escrivão impediu minha mãe do infortúnio que destruiria o resto da minha vida: me carimbar de “Heathcliff” após enlouquecer com O morro dos ventos uivantes – tenho o escrivão como um pai pra mim, já que nem conheci o meu biológico. As pessoas aqui me alcunharam de “Santi”; a gente costuma comprimir o nome daqueles de quem realmente gostamos, e os clientes habituais gostam muito de mim, são quase as únicas pessoas com as quais me relaciono não-sexualmente. Logo, também sou obrigado a amá-los, o que se torna mais fácil quando eles têm uns 21 aninhos, rímel púrpura nos olhos, deixam a lombar em exposição e pedem cappuccino com bastante chantilly. Eu ainda não descobri se preciso escrever pra ter garotas ou se preciso de garotas pra escrever. Sei que adoro preparar coisas onde cabe chantilly.
Falando em chantilly, hoje faz treze dias que Juliete não entra por aquela porta. Não que eu esteja contando os dias, apenas sou bom com cálculos e não tenho muito mais no que pensar. Talvez se eu fosse um desses universitários preocupados com alguma tese sobre o cosmos ou sobre os tigres de bengala, eu já tivesse esquecido de letra a tal da estudante de Psicologia. Acontece que preciso enfiar umas tralhas na minha vida para que ela não pareça tão vazia e destemperada, perto da existência desses nossos jovens clientes catedráticos que, saindo do daqui certamente vão para as ruas mudar o mundo. E se é assim, aquela garota-encrenca-neurótica tem cumprido muito bem sua função.