Não sei se como escritor ou barista fedendo a pastel, mas ela lembrou de voltar. Talvez por outra razão, mas voltou. Reapareceu aqui no meu café, quer dizer, no café onde trabalho. O local já estava fechado, mas a proprietária sempre esquece de trancar a merda da porta frontal quando sai. Fiquei honestamente surpreso porque, mal quem anseia beber um bom café vem aqui, logo, não tenho ideia do porquê de uma bela – e tensa, e preocupada... – universitária faria isso. Não há grandes atrações na casa.
Porém, aconteceu daquela garota desnorteada voltar e pedir uma bebida forte. Não servimos alcoólicos aqui, exceto em alguns frapês inspirados nos que experimentei quando morei em Dublin, então ela pediu um irlandês com conhaque extra e, por favor, sem o café. Ela é esperta e bonita, duas coisas que me fizeram pensar nela a semana toda. Servi o conhaque, com muito chantilly.
– Que porra é essa por cima? – me interroga.
– Desculpe senhorita – vou explicando –, mas o troço branco por cima não é isso aí que você disse. É apenas chantilly, muito chantilly, porque te achei meio triste e talvez isso, que não é porra, te anime um pouco. Pela sua cara tensa, porra não ajudaria em nada. Ou, sei lá... – eu milagrosamente consigo fechar a minha boca maldita.
Ela meio que acha engraçado, abafando com as mãos pequenas o rosto visivelmente quente, de quem fugiu de uma briga de relacionamento ou coisa assim. Enquanto ela mexe a porção lentamente, escondida nos próprios cabelos de design espanhol (ao cerrar de leve as pálpebras como um míope, sua figura embaçada me lembra um pouco a Penélope Cruz em Vanilla Sky), silenciosamente então carrego três sacões cinza-escuro de lixo seco pra fora.
Do lado de cá da porta, o mundo está envolto em um frio exato e paralisante. Olho um tanto os perigos da rua, de longe uma sirene de ambulância, é tarde, já terminamos o expediente, eu observo um pouco a garota. Estatura não muito alta, as botas verde-musgo de saltos estrídulos, ela tem uma perna cruzada na outra, ambas enfiadas num jeans apertado e os cotovelos no balcão. Ela alisa a franja castanho-escura, choraminga e beberica o conhaque com conhaque coberto de chantilly doce.
Acendo um cigarro e tiro do bolso um gorro, meu gorro verde e favorito, com discretas listras horizontais em vermelho e branco, que incrivelmente realça meus olhos cansados. Todas as minhas namoradas de ocasião adoravam esse gorro, aposto nisso. Quando lembram de mim, sentem falta do gorro. Óquei, nem todas. Tudo bem, quase nenhuma gostava do gorro. Uma terminou comigo por causa disso, até. O gorro, as mãos no bolso, o filtro entre os lábios rachados, cuidando um lado da rua e depois o outro, quando de revesgueio olho mais uma vez a garota e ela me olha de volta. E se assusta. Nunca me viu de gorro, dá um sorriso de reprovação e faz a velha cara de quem também não gostou. Ela sorri fácil, isso já notei, então penso alguns segundos sobre que tipo asqueroso de babaca faz aquele tipo de garota chorar em cafeterias fechadas, às dez da noite. Me desfaço da bituca, assopro a fumaça vaporizada e retorno ao recinto. Acanhado, mal-humorado do frio e interessado nela e em sua história triste.
– Qual seu nome?
– Juliete. Posso fumar aqui?
– Não, não pode, “Juliete Posso Fumar Aqui”. Você não devia fumar. Aqui e em todos os lugares. Mas, óquei, vou facilitar as coisas pra você. Só hoje.
– Obrigada, “mãe” – ironiza.
– Você tem a pele de pêssego – digo. Super clichê, mas foi a única fruta que me veio em mente. Não curto muito frutas quando não recheiam tortas.
– Você sempre canta suas clientes no balcão?
– Não. Só as que me interessam. E só quando se mostram vulneráveis. Se entrarem aqui na minha hora de ir pra casa então, é como um bônus, sabe? Hora-extra e tudo – faço uma pausa no flerte. – Sou péssimo nisso, eu sei. Desculpa. Parei.
– Não é tão ruim, até melhor do que você pensa – Juliete me consola. – É engraçado, nós conversamos como velhos amigos e eu nem sei seu nome. Você tem um nome, não tem? Qual é?
Informo meu nome e, por conta própria, adiciono a informação que as pessoas, quando gostam de mim, resumem meu nome num apelido óbvio e carinhoso. Ela diz “Óquei” e me chama pelo nome completo, sendo até desagradavelmente enfática em cada sílaba dele. Eu jogo meu charme e a garota me dá um fora gramatical.
– Bonito nome – ela diz e traga. E tosse, porque não sabe direito o que está fazendo da vida.
Pausa.
– Parece que você quer falar sobre alguma coisa – eu investigo.
– Não quero. Quero, na verdade. Mas não contigo. Nem te conheço.
– Mas está aqui e já sabe até meu apelido de infância. Outra vez, a essa hora da noite. Fumando e bebendo conhaque barato. E está triste, de novo. Eu acho que...
– Sabe – ela me interrompe. – ...se você pudesse me resumir em uma palavra, qual seria?
– Encrenca.
– Não, sério.
– Nunca falei tão sério.
– Para meu namorado, ou ex-namorado depois de hoje, sei lá, é “bosta”. Ele acabou de dizer “some daqui sua patricinha de bosta!”
– Hum. Bom, é um outro ponto de vista, diferente do meu. – Não sei muito bem o que dizer, então não digo mais nada.
Nova pausa, com uma ausência de som obscena.
– Escuta, você sairia mesmo com uma encrenca? Não estou dizendo que sou uma encrenca, mas você parece meio interessado. Também não estou dizendo que estou interessada, não estou, só gostaria de saber por que você acha isso, que sou encrenca, e por que se arriscaria a sair comigo mesmo assim, você sabe, se eu quisesse sair contigo.
– Nossa. Posso trocar a palavra para “neurótica”. Cairia bem também.
– Certo. Eu entendi. Ha-ha – ela ri sem humor. – Quero saber se você costuma sair com garotas-encrenca-neuróticas.
– Sim. Acho que não sei fazer outra coisa. O motivo, honestamente, eu ainda não sei.
Mas eu sei, na verdade.
– Óquei. Talvez a gente saia, um dia. Não sei. Vou ver. Pra conversar.
– Tudo bem. Enquanto você se decide, preciso ir desligando a máquina de café e apagando as luzes.
Eu vou desligando a máquina de café e apagando as luzes.
– Então. Acho que vou facilitar as coisas pra você. Só hoje – Juliete anuncia, com um risinho sardônico transbordando a boca.
– É assim que se fala, garota. No seu palácio ou na minha espelunca?
– Hã? Como assim? Não, você fez confusão. Vamos tomar um café noutro lugar, já que você resolveu fechar este. Você não disse que queria me ouvir? Vamos lá, te espero lá fora.
– Ah. Não. Nesse caso, acho melhor não. Não bebo café à noite. E pensei que você não fosse grande fã de café.
Eu entendi, claro que entendi. Para meu próprio bem, só estou agora fingindo ser portador de Síndrome de Asperger. Cada um faz seu jogo. Ela articula com metáforas. Eu entendo tudo literalmente. Deus nos ajude porque isso vai longe. Ela dá de ombros, meio que depois-não-diga-que-não-dei-chance e vai embora. Eu meio que me arrependo, mas não vou atrás. Se eu quiser encrenca, escolho um parrudo na rua e pergunto se ele curte o Freddie Mercury mais do que deveria. Não se pode dar muito crédito a essas pequenas, ou então elas já querem encilhar você.